Crítica a partir do espetáculo “Os Cadernos de Kindzu”
– Por Elisa Belém –
No programa da peça “Os Cadernos de Kindzu” (1), do grupo AMOK Teatro (2), lê-se: “E é o que buscamos aqui, simplesmente contar uma história. Existe algo muito antigo nisso, como um procedimento arcaico: lembrar, reviver, compartilhar. É, para nós, a raiz do teatro.”
Aí está a base dessa montagem: uma boa história a ser contada. Como em espetáculos anteriores do grupo, tais quais “O Dragão” (2008) e “O Carrasco” (2001), o fio da narrativa é desenrolado e entrelaçado, por meio da força da palavra, do jogo dos atores e de suas presenças, da musicalidade e do atravessamento de culturas. A questão das identidades culturais aparece como tema para as encenações e como traço característico da formação do grupo, que partiu da união de uma diretora brasileira, Ana Teixeira, e de um ator e diretor francês, Stéphane Brodt, que se propuseram também a pesquisar culturas não europeias.
Esta peça, “Os Cadernos de Kindzu”, conta uma história sobre deslocamento e pertencimento. Numa terra devastada pela guerra civil, o personagem principal Kindzu se vê diante da perda no círculo familiar e de amigos. Parte assim, para uma viagem além-mar. As palavras do pai falecido, que lhe visita nos sonhos, o guiam: “Quem não tem amigo é que viaja sem bagagem”. Seu melhor amigo, em sua terra natal, era um estrangeiro que o levava até o mar e lhe dizia que a pátria deles era o oceano índico. Bela é a ideia que está aí: amigo é aquele que te desloca do conhecido, do que você é. Um amigo não é um seu igual. E a terra, nessa peça, é a água, é o mar. Terra móvel, terra flutuante, mas que pode parar como se o mar adormecesse e, por magia, pudéssemos andar sobre ele ou guiar nosso barco pelos comandos da voz. Terra em guerra exige deslocamento, fuga e procura, refúgio e retorno.
As circunstâncias do viver são marcadas pela violência e levam à impossibilidade da volta; à diáspora como uma marca profunda no ser. O deslocamento forçado ou como resultante da guerra conduz Kindzu pelas histórias dos outros que formarão a sua própria história, além de confrontar-se com o pertencimento. Afinal, o que se constitui como nosso – o corpo? As lembranças? O sonho? O desejo? Os encontros? A terra natal? A pátria, em “Os cadernos de Kindzu”, parece sempre um lugar distante a ser alcançado e que, ao mesmo tempo, habita costumes, sotaques, crenças, vestes, sonoridades, lembranças. A terra está sempre além-mar.
Com uma boa história, a encenação nos acolhe e pede uma pausa para ouvir. E com a simplicidade de artesãos, os atores constroem o espaço e os lugares aonde as cenas se passam. O vigor físico aparece na precisão dos movimentos e nas intenções que fazem com que as palavras se tornem matéria moldável. As sonoridades dos instrumentos, das vozes, canções, línguas e sotaques nos conduzem por terras estrangeiras e líquidas, moventes como o mar. Nesse percurso, o que é procurado se aproxima e se afasta numa África pós-colonial atravessada por várias culturas. A encenação, no entanto, perde força quando há um excesso no que se refere à expressividade dos atores, chegando a um tom caricatural. Se tais momentos pudessem ser suavizados, poderia haver uma maior fluidez na condução dos espectadores.
Ainda não tive a oportunidade de ler o romance “Terra Sonâmbula”, de Mia Couto, a partir do qual foi criada a peça “Os Cadernos de Kindzu”. Mas o conjunto dessa encenação – desde o texto, a cena e até mesmo a excessiva expressividade – parece indicar o nosso estado de sonambulismo. Apartados de vínculo e pertencimento, vagamos pelo mundo em busca de uma terra que é mar, é movente, como se não pertencêssemos a lugar nenhum. No centro da diáspora, Kindzu revela: “(…) esta guerra não foi feita para nos tirar do país, mas para tirar o país de dentro de nós”.
1 – Temporada no Centro Cultural Banco do Brasil, em Belo Horizonte: 06 de abril a 08 de maio de 2017.
2 – “Dirigido por Ana Teixeira e Stephane Brodt, o Amok Teatro se dedica a uma pesquisa contínua do trabalho do ator e das possibilidades de encenação. Desde sua fundação em 1998, o grupo tem recebido por seus espetáculos os mais importantes prêmios de teatro brasileiro e um grande reconhecimento da crítica e do público. Além dos espetáculos, o Amok Teatro desenvolve uma intensa atividade pedagógica, com ênfase na formação de atores e mantém em sua sede, a Casa do Amok, projetos de pesquisa, formação e intercâmbio, apoiando o trabalho de grupos e artistas de diferentes segmentos.”(www.amokteatro.com.br)
A primeira idéia que me vem ao pensar no espetáculo “Os cadernos de Kindzu” é o afeto. Para mim, é um espetáculo do afeto. Talvez por me lembrar das histórias contadas pela minha avó, pela minha mãe e até na escola quando eu era criança.Identidades são construídas ao ouvir e contar histórias. Identidade são restabelecidas. O texto do Mia Couto, ainda que mediado pelo olhar do grupo AMOK ,e que eu confesso não ter lido, é absurdo de bom, tal o grau de poesia, de lúdico que ele carrega, mesmo falando sobre algo tão triste como desterritorialização e destruição de um povo, de uma cultura. O trabalho dos atores é muitas das vezes surpreendente para o olhar, para os ouvidos. A música e o som vindo de alguns instrumentos inusitados tocados em cena eram inebriantes . Diria que é um espetáculo quase perfeito, não fosse, em alguns momentos carregado pelo drama na representação e por pequenas pontas de realismo. No mais, agradeço aos atores do espetáculo, ao grupo AMOK a fina comida que nos foi servida.