— por Luciana Romagnolli —
Crítica de “Trueque”, da Cia. Animeé.
“Às vezes, o palhaço deve saber abrir mão do fenômeno cênico em prol da relação”, já disse Teotônio, o palhaço de Ricardo Pucceti, do grupo Lume, de Campinas. Estar aberto para o jogo exige um estado de presença e prontidão para o improviso, sem apego excessivo ao que se pretende fazer e mostrar, pois só nos vazios o jogo com o espectador encontra espaço para acontecer. Faz parte da arte da palhaçaria, portanto, uma interação direta com a plateia, a disposição à mútua afetação.
Essa relação não apenas está presente, mas é a própria substância do espetáculo para crianças “Trueque”, apresentado pelas palhaças Mary En (Enne Marx) e Tantan (Tamara Floriano), da Cia. Animeé, de Recife, no IV Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, em Itajaí. Tanto que as duas artistas dispensam a submissão a uma fábula organizadora ou mesmo algum fio narrativo que dê unidade à sequência de ações a serem desempenhadas em triangulação com o público. A dramaturgia de “Trueque” troca a história pelo jogo, na intersecção do circo com o teatro, e delega às músicas o quinhão de poeticidade que instaura o estado artístico. Com isso, faz do espaço somado de palco e plateia um território lúdico e permeável.
Só é possível que as afetações transcorram tão livremente entre plateia e palco em razão do grande carisma das palhaças, que encontram um tom entre a doçura e a marotagem visivelmente atrativo para as crianças (e para os adultos imbuídos do espírito infantil, que eram maioria na sessão realizada na cidade catarinense). Tantan e Mary En funcionam como uma dupla complementar e coesa, que floresce especialmente nos vocais expressivos da primeira. A cena de apresentação do nome da palhaça criada por Tamara Floriano é exemplo da potência do uso de referências musicais para provocar um efeito inesperado e, consequentemente o riso.
Juntas, então, as duas constroem uma atmosfera de cumplicidade com o público, encorajando a participação espontânea dos espectadores desde as menores idades. A naturalidade com que crianças sobem ao palco atesta que, sob a ação das palhaças, aquele se torna um terreno amistoso e a arte se aproxima da brincadeira. Para isso, contribui também o respeito ao tempo de resposta das crianças, não o ritmo acelerado ao qual nos acostumamos na rotina 24/7 (a expressão é do ensaísta norte-americano Jonathan Crary), mas uma dinâmica distendida.
Em raros momentos a dinâmica afrouxa-se como consequência da opção por “abrir mão do fenômeno cênico” um tanto mais. Ao menos, na visão desta adulta, foi o caso da sequência de mágicas e da cena que antecede o final, quando um grupo de espectadores é levado ao palco sem um propósito de ação claro. São momentos que não atingem a mesma carga criativa, embora sustentem o riso e a prontidão do espectador, que a esta altura já aderiu completamente ao jogo.
O espetáculo nasceu da vivência durante o trabalho em hospitais com os Doutores da Alegria. Pode-se imaginar que esta tenha sido uma contingência determinante para que a relação com o espectador sobressaísse. Ao mesmo tempo, fica uma sensação de que o trabalho pode ganhar ainda mais potência sensível se somar a essa admirável capacidade comunicativa uma elaboração mais poética das brincadeiras, como se vê na delicada, comovente e cômica sequência da morte do “biquinho”. Mesmo quando a dramaturgia se dispersa, porém, a música feita com aparente simplicidade em sinos e tubos e a oralidade elaborada com em texturas vocais e rimas imantam as atenções. Quem duvidaria da força cômica de um mero dabadabadu?
*Espetáculo visto em 09 de agosto de 2015, em Itajaí/SC.