– Por Victor Guimarães –
Entre o corte da espada e o perfume da rosa
Sem menção honrosa, sem massagem
Racionais MCs
O que pode o teatro diante da urgência do real? O que pode essa arte da cena – essa que demanda tempo, trabalho, forma, mas que acontece sempre na contemporaneidade imprevisível do palco – frente a esse amálgama amargo de violência, velocidade e esquecimento a que chamamos presente? Essa parece ser a questão que atravessa o espetáculo mais recente do Espanca!, o conjunto de quatro peças curtas Real. Logo de início, a permeabilidade da cena às premências do mundo é explicitada pela apresentação do processo que conduziu àquela noite, àquele palco: ainda com as luzes acesas, ouvimos a introdução feita pela produtora do grupo, Aline Villa Real, que nos conta que cada uma das peças teve como disparador um acontecimento político recente, noticiado pela imprensa brasileira. Numa reinvenção contemporânea dos métodos do teatro de revista, as notícias inspiraram o trabalho de quatro dramaturgos de destaque na cena nacional: o linchamento de Fabiane Maria de Jesus no Guarujá, em 2014, é o estopim para “Inquérito”, de Diogo Liberano; o atropelamento do ciclista David Santos Souza na Avenida Paulista em 2013 motiva “O Todo e As Partes”, de Roberto Alvim; a greve dos garis cariocas em pleno Carnaval de 2014 desengatilha “Parada Serpentina”, de Byron O’Neill; e a chacina na favela da Maré, em 2013, suscita “Maré”, de Marcio Abreu.
Cada um desses fatos é ao mesmo tempo um rastilho a percorrer cada texto, um pavio a incendiar os corpos em cena e uma presença fantasmática a acionar a memória de cada espectador. Da extrema volatilidade dos eventos cotidianos – essa que faz com que cada timeline seja convertida diariamente num túmulo precaríssimo, apto para sustentar o luto por algumas horas, mas incapaz de deter o fluxo inexorável do esquecimento – surge o combustível para o teatro, essa arte que, dentre todas, é a que menos combina com a morte. E, no entanto, é sobretudo de morte – dessa morte diária, frágil, veloz como um automóvel, um espancamento ou um tiro – que é feita a matéria dramática de Real. O gesto consiste em transfigurar essa imperdoável ligeireza em obra viva e pulsante, em recuperar o peso e a densidade de cada tragédia singular, em oferecer a cada evento uma chance de sobreviver transformado em cena.
“Inquérito” nos apresenta uma casa, habitada por um pai, duas filhas (ambas interpretadas por atores homens), o fantasma de Fabiane (que também faz as vezes de narradora) e duas outras figuras masculinas que permanecem na sombra das adjacências do palco, até que a energia da cena os convoque a atuar. Sob o impacto da ausência súbita da mãe, a família se engaja em um jogo dialógico violento, em que aquele que não responde a uma pergunta deve apanhar. A memória do linchamento ora tinge de brutalidade a brincadeira – cada momento de tensão é uma ocasião para que a reserva de ódio contida nos atores à espreita seja ativada com prontidão em socos e pontapés –, ora é encarnada na narração da mulher-fantasma.
A crença nas potências do artifício e no poder de evocação do teatro – que atravessa todas as quatro peças – é o que anima os melhores gestos de “Inquérito”, esses em que a violência do ato encontra abrigo numa encenação a um só tempo lúdica e intensamente grave. Mas é essa mesma crença que parece vacilar quando os diálogos da família oscilam indecisamente entre o coloquial e o declaratório – nos vários momentos em que a dureza da deixa supera a vivacidade da relação entre os atores –, ou quando a narradora se vê obrigada ora a afirmar desnecessariamente a ficcionalidade do que vemos (“Isso é teatro”), ora a lamentar o acontecimento, dizendo com voz embargada o nome de Fabiane. Nessas operações, é como se a peça precisasse sobrepor ao drama real um suplemento de dramaticidade – cujo emblema é o tom de lamento da narração de Gláucia Vandeveld –, talvez ignorando que o gesto mais forte de sua poética consistia justamente em despir a narrativa de seu caráter espetacular, em desativar a homogeneidade telenovelesca das notícias e abri-las à multiplicidade improvável do teatro.
“Por que a mamãe morreu?”. A pergunta-refrão que permeava “Inquérito” parece encontrar uma resposta dramatúrgica no niilismo resoluto de “O Todo e as Partes”, cuja fatura é diametralmente oposta à da primeira peça. A aterradora ausência de sentido moral da violência é aqui assumida em toda a sua radicalidade, numa encenação que aposta decididamente na desumanização como princípio. Instalados pela trilha sonora em um sinistro hospital, somos apresentados a três corpos imobilizados, que se insinuam na escuridão do palco e compõem uma imagem beckettiana: de um lado a vítima, do outro o algoz, no centro uma figura estranha, espécie de deidade monstruosa responsável por gerir a cena. Um detalhe crucial do acontecimento – o braço arrancado do ciclista, que permanece no interior do carro e depois é arremessado pelo motorista num córrego – dispara uma encenação que torna literal a objetificação do humano: numa peculiar aplicação da Lei de Talião, o juiz ordena que o braço do motorista seja arrancado de seu corpo e implantado no tronco do rapaz mutilado. A narrativa traçará a trajetória desse pedaço de corpo, que ganha uma autonomia atroz e termina por ceifar também as pernas do ciclista e depois assassiná-lo, para então retornar ao dono.
O cruzamento com o teatro de bonecos do grupo Pigmalião amplifica a rigidez cirúrgica da dramaturgia de Roberto Alvim e se encarna no estilo declaratório das falas, aqui assumido em sua inteireza pelos atores (especialmente por Gustavo Bones, a figura central). A consistência inanimada dos corpos – entre homens e bonecos – contrasta com a mobilidade do braço amputado, único personagem a se movimentar no espaço. Diante de uma realidade a tal ponto reificada, é preciso coisificar também a cena, cifrando na “fortaleza imaculada” de um “braço viril” – e na complementar autonomia de um automóvel-projétil em alta velocidade – o destino de uma humanidade arruinada. A nós, espectadores, igualmente imóveis, resta a vertigem da contemplação das coisas que já se movimentam sozinhas.
Na transição para “Parada serpentina”, ainda com as luzes acesas, a menção ao movimento incessante que encerrava a peça anterior se materializa num saco de lixo, que dessa vez precisa do engajamento dos atores e atrizes para se lançar de um lado a outro do palco. Da depuração extrema saltamos à ocupação populosa do espaço. Aos poucos, no bojo desse aquecimento que já integra a cena, o conteúdo do saco vai se esparramando pelo chão e passa a compor o cenário, entre o lixo de todos os dias e os restos festivos de um carnaval. Animado pela trilha sonora, o jogo inicial se torna coreografia ritmada, celebração alegre no passinho, para depois se refazer em blocos de corpos que se atraem e se movimentam juntos, entre o organismo e a orgia, entre o montinho e o motim (como descreveu belamente Soraya Belusi em seu texto aqui no Horizonte da Cena).
A dramaturgia de Byron O’Neill é uma aposta radical na evocação: não há diálogos, não há palavras senão aquelas das canções e dos cantos de protesto que contaminam a trilha sonora. A greve carnavalesca dos garis cariocas dispara uma encenação que investe no limiar entre o protesto e a festa, entre o detrito e o confete, mas que ganha corpo e singularidade num impressionante tableau vivant em moto-contínuo que mistura signos da história recente das lutas festivas belo-horizontinas (a camiseta do Movimento Fora Lacerda, o Chapolin, o traje das banhistas da Praia da Estação) à memória do movimento grevista, mas do qual não está ausente uma iconografia da violência urbana. As roupas se perdem pelo caminho, as atrizes e os atores se tocam e se fundem, os blocos moventes se formam e se desfazem numa celebração libertina, mas também são capazes de atropelar o corpo negro de Alexandre de Sena, que se erguerá ao final sobre essa provisória massa humana como uma escultura em riste. Entre foliões e lixeiros e moradores de rua; entre o muralismo, o grafitti e a action painting; entre a bateria da escola de samba, o tamborim da manifestação e os tiros da polícia; entre a dança, a fusão orgiástica e o rolo compressor, o que “Parada Serpentina” encena é uma vibração densa, uma miríade contagiante de sons, cores, imagens e corpos em perpétuo movimento, capaz de nos colocar diante da confusão da experiência histórica brasileira recente de uma maneira avassaladora.
Do movimento dos corpos, passamos aos meandros sinuosos da voz. “Maré” parece captar a plasticidade móvel de “Parada Serpentina” e encarná-la no texto e na dicção de Gláucia Vandeveld, que ressurge luminosa no palco como a matriarca de uma família dilacerada pela chacina. Depois de uma viagem à urbanidade, estamos de volta ao espaço íntimo, mas dessa vez há algo que espreita lá fora, uma violência ancestral que está prestes a dar mais um bote no presente. A extraordinária textualidade de Marcio Abreu – também presente em “Vida”, da Cia Brasileira, e em “Nós”, do Grupo Galpão, recentemente apresentadas em Belo Horizonte – aparece aqui em sua encarnação mais exuberante, numa série de melopeias polifônicas que restituem, a partir de diferentes pontos de vista, uma cotidianidade alegre fraturada pelo assassinato súbito de um pai. Os fragmentos de casos de um tempo povoado de histórias de seres mágicos (esses que também aparecem no filme “Contos da Maré”, de Douglas Soares) se juntam à infância, ao feijão no fogo, ao trabalho duro e a toda a riqueza existencial da vida na favela, mas também são assombrados pelo espectro da morte.
Na brincadeira das crianças, essa dicção ao mesmo tempo fragmentária e harmônica se distribui em diferentes vozes, que compõem uma sorte de jogral fantasmático povoado de imagens. De forma ainda mais impressionante, a avó, a mãe e o pai se engajam em monólogos que vão da descrição ao protesto, do poema ao canto, da repetição à variação, da coloquialidade ao recitativo, num texto ao mesmo tempo musical e cinematográfico, que parece vibrar na mesma frequência tensa da iminência do desastre. A desconstrução da língua dá lugar a uma fala polimorfa, mas que ganha uma fluidez notável no trabalho vocal dos atores. No último dos monólogos, Alexandre de Sena fala e de repente canta, descreve uma cena e de súbito faz explodir a sintaxe, como se a interrupção brusca de uma frase materializasse a extinção abrupta de mais uma vida.
“Angústia” é a palavra que se repete e se acentua ao final de “Maré”, e é com essa sensação violentamente aflitiva que deixamos o espetáculo, entregues de volta (um pouco mais mortos, mas também um pouco mais vivos) à agonia inescapável do real. Num momento em que o teatro belo-horizontino vive uma peculiar conjunção de inquietações quanto a um possível engajamento de seus artistas na experiência vertiginosa do presente – materializada já nos títulos (“Urgente”, “Nós” e “Real”) dos novos espetáculos de três dos grupos mais importantes da cidade –, o Espanca! se destaca do conjunto ao colocar em cena um espectro assustadoramente variado e potente de poéticas singulares, todas capazes de fazer do teatro um lugar de encontro com a face mais violenta da beleza. Diante da dor dos outros não há leveza possível.