Crítica a partir do espetáculo O Importado
– por Marcos Antônio Alexandre – Faculdade de Letras/UFMG – CNPq
O ano de 2018 encerrou como um ano em que as encenações negras se consolidaram ainda mais dentro do cenário artístico brasileiro e belo-horizontino. Além dos inúmeros trabalhos apresentados na segundaPRETA, evento que se consolidou como uma ação de aquilombamento negro que disse a que veio e tem a ciência de que continuará dando voz e visibilidade a inúmeros trabalhos pretos potentes[1], o FIT BH, pela primeira vez, teve uma curadoria comprometida com a arte negra e apresentou em sua grade de espetáculos, montagens locais, nacionais e internacionais que têm os sujeitos negros e as suas afetividades, identidades e subjetividades como foco de referência, como Black Off, Ceci N’Est Pa Noire, Deformação, Isso é um Negro?, Libertação, Merci Beaucoup, Blanco, O grito do outro, o grito meu!, Quaseilhas, Unwanted.[2]
Apesar de ter ressaltado esta linha de trabalhos que versam sobre a negritude e o seu lugar de projeção no âmbito artístico, para esta breve reflexão, volto o olhar analítico para o trabalho solo concebido por Odilon Esteves, O Importado, estreado em novembro de 2018 no Projeto Criações de Bolso do Sesc Palladium. Trazer essa peça para discussão me toca profundamente, pois não acredito em uma crítica isenta, aquela na qual se pregoa que o autor deva esquivar-se de se comprometer com o “objeto” de sua análise. Como já expressei em outros textos, hoje, só vejo sentido na crítica que seja comprometida com o seu tempo e, por sua vez, com as afetividades e subjetividades de seu enunciador. Em relação ao solo de Odilon, o texto encenado me deixa profundamente incomodado.
Como ponto de partida de meu olhar reflexivo, destaco a excelente performance de Odilon Esteves, corroborando a assertiva do grande artista que é. Não obstante, não posso me esquivar de emitir o meu repúdio ao texto de André Sant’Anna: ainda que o conto “O importado vermelho de Noé” tenha sido incluído na antologia Os cem melhores contos brasileiros do século (organizada por Italo Moriconi e publicada pela Objetiva, em 2001) e que tenha como referência o Brasil dos anos de 1990, o teor de sua escrita desvela uma arrogância intelectiva que me afasta do texto, pois o meu corpo negro não dá mais conta de ler e/ou escutar/reproduzir:
Deus, leve o meu carro vermelho, importado da Alemanha, para o aeroporto, onde o voo da American Airlines espera por esse seu devoto, grande administrador branco, perspicaz, amigo de Paulo. Deus, eu sou sua imagem e semelhança, Deus. Eu sou belo, Deus. Eu creio, Deus. Deu no rádio. Está chovendo dinheiro em Nova York e o meu carro vermelho, importado da Alemanha, está preso entre os carros nacionais, às margens do Rio Tietê, onde a água normal e o excremento dos pretos, por culpa do prefeito, começam a invadir a via onde o meu carro vermelho, importado da Alemanha, não consegue sair velozmente do lugar.
O teor do discurso, pretensiosamente irônico, é de tal forma ofensivo ao meu corpo preto que, ainda que eu reconheça a tentativa de crítica aguda e ácida do autor, o que acaba me saltando à vista é o intento mal logrado da branquitude de exercitar uma busca por falar com uma causa da qual se revela um desconhecimento profundo típico daqueles que falam de “fora”, um discurso de sujeitos que não têm real consciência da vida que leva a maioria dos pretos brasileiros. Até admito que a mensagem possa vir a assumir algum resultado “positivo” entre os leitores/ espectadores brancos, mas não em mim e, muito menos, nos corpos de outros pretos com os quais compartilho vivências, ideologias e opiniões.
Merece destaque o cuidado de Odilon Esteves para trazer o texto para o momento presente em que há tantos trabalhos realizados por atores negros e a partir do ponto de vista interno dos negros. O ator demonstra que é sensível à causa dos sujeitos negros e que, principalmente, tem consciência de que o texto de Sant’Anna expõe uma visão racista e por isso precisa ser levado aos palcos; talvez, para que uma grande parcela da sociedade possa, quem sabe, tendo acesso às barbaridades que são colocadas na boca da personagem – “um jovem administrador, homem branco, heterossexual, bem-sucedido financeiramente”, de alguma forma, também se sensibilizar e dizer não a atitudes tão abjetas.
Temática cara aos estudos literários/ dramáticos contemporâneos, a representação de personagens – personas/sujeitos – negros ainda desperta diversas discussões dentro do âmbito acadêmico. Os sujeitos negros, quando não escritos e descritos por autores e intelectuais negros, ainda continuam sendo associados a leituras estereotipadas e não comprometidas com as suas realidades e identidades (de homens e mulheres negras). Desafortunadamente, ainda impera um olhar desvirtuado, realizado à distância, muitas vezes, sem o menor conhecimento das peculiaridades inerentes a vida dos afro-brasileiros. O texto de Sant’Anna nos apresenta uma personagem que é construída a partir de preconceitos e frases feitas que se repetem ad infinitum, demonstrando um alargamento pejorativo no sentido das palavras que são despejadas como coisas-dejetos diante do olhar do leitor/ espectador: “prefeito preto”, “assaltantes pretos”, “excremento dos pretos”, “demônio preto”, “dejetos humanos pretos”, “criminosos pretos”, “demoníacos carros nacionais dos pretos”, “água normal dos pretos”, “rio preto”, “prefeito preto do povo preto” etc.
Diante de texto tão indigesto, por que Odilon Esteves se propõe a adaptar o conto para o teatro? É exatamente o fato de o ator pretender discutir este caráter abjeto, levando o texto em sua íntegra para a cena, a resposta e mérito do trabalho. Como um artista antenado a seu tempo, Odilon decide conversar com pessoas negras para contribuir, de alguma forma, com o seu processo de construção espetacular[3] e escuta de Soraya Martins como provocação que ele deveria pensar a partir do ponto de vista da branquitude, de sua branquitude, ou seja, era preciso colocar-se em discussão, em autorreflexão, voltar o olhar para si, revendo os seus privilégios como artista branco. Este questionamento se transforma em uma pulsão que faz o ator pensar em seu trabalho e ele produz duas cenas – que poderiam ser vistas como ante e entreato – que são incorporadas ao seu solo.
Num primeiro momento, o ator relata a seu espectador os fatos que o levaram a montar o texto, explicita que queria falar sobre a loucura (documentários sobre centros psiquiátricos, sobre o nazismo etc.) e se dá conta de como ela, a loucura, se manifesta de diversas formas em nossa sociedade. Também fala de como teve acesso ao texto de André Sant’Anna e oferece alguns dados sobre o autor e sua obra, advertindo o público sobre o teor do texto – que trata de um homem que tem um “projeto de vida”, como muitos em nossa contemporaneidade – que ele decidiu interpretá-lo na íntegra e que antes do fim da apresentação ele voltaria a conversar com a plateia. No segundo momento, depois de o público acompanhar o ator dando “credibilidade” ao percurso da personagem em direção ao aeroporto, em seu carro importado vermelho, rumo à Nova York, onde está chovendo dinheiro, o ator mais uma vez se dirige à plateia para quem lê uma carta em que se coloca em discussão, relatando situações pessoais em que se viu envolvido e nas quais, hoje, tem consciência de que agiu, seguindo a construção heteronormativa, de forma preconceituosa e racista. Reconhecer-se “racista” é uma atitude positiva da branquitude que deve ser pautada. Neste segundo contato com o público, o ator se desvela diante do espectador, lembra-se de uma passagem em que foi preconceituoso com uma amiga de infância e reconhece a hipocrisia da sociedade contemporânea que continua alimentando discursos semelhantes ao texto verborrágico da personagem. “Você já se perguntou o que é ser branco”? Fica a pergunta que o ator traz para o seu espectador…
O questionamento de Odilon dá credibilidade e justifica o porquê de seu desejo de levar o conto de Sant’Anna para o palco. Neste sentido, sem dúvida, o espetáculo O Importado é exitoso e cumpre com o objetivo de abrir os olhos da branquitude para as pessoas que estão à sua volta. Os pequenos silêncios, os risos nervosos – de muitos – e frouxo – de outros, os entreolhares, às vezes constrangidos, de muitos da plateia durante a representação me permitem afirmar que a montagem é bem-sucedida e que funciona como uma chamada à reflexão. Por mais que você não queira, não é possível sair alheio à encenação.
Em termos técnicos, devo ressaltar a entrega do ator à personagem, o cuidado ao trazer uma gestualidade específica para pontuar cada frase do discurso do “homem do carro vermelho importado da Alemanha”. De igual maneira, merece destaque o cenário e o figurino concebidos por Fernando Badharó e a iluminação de Juliano Coelho que pontua momentos específicos e chaves do trabalho, mas o que fica, sobretudo, é uma atuação de excelência de Odilon Esteves. No entanto, se o público vai ao teatro esperando encontrar em cena a docilidade do ator expressa em outros trabalhos dos quais participou com o grupo Luna Lunera ou o seu lado poético visto nas redes sociais, vai se surpreender e muito…
Espetáculo assistido na primeira temporada no Sesc Palladium (2018) e depois durante a Campanha de Popularização do Teatro e da Dança (2019).
Ficha Técnica:
Autor: André Sant’Anna
Direção: Fernando Badharó e Odilon Esteves
Atuação: Odilon Esteves
Cenário e Figurino: Fernando Badharó
Iluminação: Juliano Coelho.
[1] Há que se destacar que a segudaPRETA já está na sua sétima edição que acontecerá entre os dias 18 de março e 22 de abril. No dia 11 de março acontece uma conversa com a homenageada da vez, Maria Mazarello Rodrigues, mais conhecida como Maza; lembrando que desde sua 1ª Temporada, a segundaPRETA vem rendendo tributos a mulheres negras que, ativamente, ainda estão e se fazem presente conosco desenvolvendo seus trabalhos artísticos, intelectuais e sociais. Entre essas mulheres já foram homenageadas Ruth de Souza, Zora Santos, Ana Maria Gonçalves, Leda Maria Martins, Conceição Evaristo e Pedrina de Lourdes.
[2] As sinopses dos trabalhos podem ser consultadas em http://fitbh.com.br/programacao-completa/espetaculos/.
[3] Odilon conversa comigo, Marcos Alexandre e com Guilherme Diniz e Soraya Martins em novembro de 2018.