Texto produzido para o Ateliê de Crítica e Reflexão Teatral, ministrado por Luciana Romagnolli, pelo projeto Diálogos Cênicos.
– por Guilherme Diniz –
Existe uma palavrinha (literalmente pequena) francesa – “jeu” – que abarca em suas singelas três letras, uma vastidão de significados; não uma vasta quantidade numérica deles, mas cada significação compreendida por ela é como um oceano infindável, que, para qualquer marujo experiente ou aprendiz, representa muita coisa. Jogo infantil, jogo esportivo e representação; são esses os significados abarcados pelo termo francês, inegável é, o quanto cada um deles simboliza para aqueles que já velejaram, genuinamente, em suas águas.
O Centro Cultural do Banco do Brasil sediou o espetáculo O Gol Não Valeu, cuja direção pertence a Sra. Cida Falabella, pela qual o elenco da ZAP 18 pôde mostrar a que veio. Se fosse um triângulo, o drama mencionado teria como vértices os três sentidos supracitados do vocábulo francês, tanto em forma quanto em conteúdo, a peça se faz valer dessa trindade semântica que, além de ter três elementos análogos entre si, harmoniza o seu desenvolvimento cênico.
O espetáculo traz ao tablado a espirituosa história do menino Rivelino. Riva, como é carinhosamente apelidado, é a cativante criança, por excelência, com os olhos vívidos e curiosos a respeito do mundo, nuançados pelo sentimento que nutre pela paixão (futebolística) nacional, um típico brasileirinho. Não só isso, Riva é defensor inconteste de seu time –Guaxupé FC – que, enquanto equipe, é um autêntico malogro. Todos estes atributos são aglutinados pela lépida presença do garotinho; seus nove anos não são paredes limitadoras de seu espírito vivaz, são, quando muito, grandes vazadas que o permitem colocar um braço, uma perna ou a cabeça toda para o lado de fora e experimentar aquilo que a pouca idade não lhe oferece. As mais habituais e as mais tresloucadas aventuras de sua vida passam pelo crivo de sua lógica infantil, esta racionalidade cândida pela qual os fatos costumeiros se avultam, os problemas se minorizam e as consequências dos atos são como fogos fátuos tão bruxuleantes quanto uma estrela solitária, ou seja, são minimamente visualizadas.
O texto de Francisco F. Rocha esculpe as palavras poética e comicamente. Estes dois sensos presentes na estrutura dramatúrgica alcançam tais efeitos por fazerem uso de elementos e referências conhecidas do futebol (narradores populares, cânticos e hinos reconhecíveis, ademanes, trejeitos e jargões esportivos), transladados para a cena por meio de imitações jocosamente fidedignas, cuja aproximação com o público sempre se presentifica, pois parte de generalidades cotidianas para alcançarem um estrato diferenciado no palco. Seu senso poético é instado justamente pela cotidianidade de suas partes, mas acrescido de particularidades cênicas, manipuladas pela representação. Dessa forma, a artisticidade do espetáculo, isto é, o modo como os elementos são manipulados, suscita a própria espetacularidade das referências citadas, seu caráter teatral, convencional, logo, poético, na acepção dramática da palavra.
Cida Falabella converge dois registros distintos e complementares estruturantes da encenação. O narrativo e o dramático. O primeiro é facilmente notificado pela narrações que desenvolvem o enredo. É mister dizer que temos dois protagonistas em cena que, em suma, são uma e só coisa, isto é, os dois são a mesma pessoa. Temos o garoto e o adulto Riva, rememorando suas vivências. Essa urdidura cênica é bastante peculiar. Pelo viés do Rivelino mais velho os fatos são lembrados como ações passadas, pelo olhar do outro, as instâncias são presentes. A deliciosa confusão temporal vai, progressivamente, sendo solvida para o derradeiro momento. Tal aplicação é interessante, porque possibilita ao público conhecer o passado e o presente do garoto, estabelecendo, assim, suas próprias diferenciações de ambos. Já crescido, Rivelino confronta suas próprias concepções de mundo, repensa algumas ações tolamente infantis, mas não abandona o substrato de seu ser. Entretanto, o emprego do recurso narrativo se enfraquece quando é unicamente ilustrativo; o ato de ilustrar por meio de palavras a ação que, logo em seguida, acontecerá, é uma repetição cujo resultado é a redundância de dois modos diferentes de apresentar um fato, não valorizando nem um e nem o outro.
O modo como sua direção manipula a área de jogo valoriza toda a espacialidade do palco, criando movimentações dinâmicas e mantenedoras do ritmo constante do espetáculo. Fator este que ressalta os desenhos de luz, devido à posição simultânea dos atores em várias partes do palco, e evidencia a funcionalidade do cenário. A respeito deste, as muitas mãos que o criaram (alunos da Oficina de Cenografia da UFMG, Ed Andrade, Cristiano Cezarino e Morgana Mafra), conferiram à sua composição verdadeira plasticidade visual e aplicabilidade cênica. Sua vistosa profusão cromática é um deleite para os olhos; mais do que isso, possibilita à direção de Cida elaborar saídas e entradas sutis, propicia jogos de cena divertidos e salienta uma das vigas mestras desta arquitetura teatral – o futebol. O telão do cenário é deveras significativo, sobretudo por abrigar projeções nostálgicas e evocativas de momentos emocionantes do esporte, extraídas da realidade, criando novos desdobramentos afetivos e empáticos para com o público.
São cinco atores em cena, e somente dois (Kely Anne e Gustavo Falabella) ficam a cargo de um personagem apenas, porém cada qual o interpreta em idades diferentes. O restante (Thiago Macedo Renata Andréa e Lucas Costa) interpreta vários outros que estão, de uma maneira ou outra, atrelados ao foco de ação principal. O grupo se mostra coeso e íntimo do texto e do tema; tal asserção se justifica pela fluidez dos diálogos, pela boa execução das marcações atorais e pela prontidão nas trocas de figurinos.
É válido ressaltar a versatilidade dos três últimos atores para compor diversas personas com certa riqueza de detalhes psicofísicos, os quais valorizaram o espetáculo na sua totalidade. Kely Anne parece ter sido uma escolha criteriosa para o papel. Ela se responsabiliza por levar à cena o menino Rivelino. Suas disposições fenotípicas – baixa estatura, cabelo curto, jovialidade física – corroboram para uma caracterização interessante do personagem, até mesmo sua voz aguda a permite abrir um vasto leque de inflexões que soam naturais e, visivelmente, não cobram um esforço prometeico. Mas seu grande mérito é a representação psicológica do garotinho. Kely retrata com ternura e delicadeza a criança, aquela que sorri para escamotear a timidez, que se aproxima dos outros com medo, simpatia e surpresa, até que, finalmente, a simpatia triunfa divertidamente. Não há infantilizações artificiais (na acepção mais baixa da palavra) na sua gesticulação, e nem há tentativas de tornar grandiloquente a presença de Rivelino. Prevalece a sutileza e a graciosidade natural de criança. Gustavo Falabella é o Riva crescido. O adulto e o infantil, além de comungarem o amor pelo futebol, partilham de um olhar sensível para com o mundo. Uma espécie de centelha sonhadora, o maravilhamento saudável em relação às coisas que acontecem. Gustavo, serenamente, traduz na sua atuação o elo afável com seu passado meninil.
O que lhe atribui significação social é menos o tema do que as circunstâncias de criação da peça. A ZAP 18 tem um reconhecido trabalho com jovens da periferia. A feliz mescla de arte e juventude, assentada sobre este tema que perpassa a conjuntura da sociedade brasileira como um todo, adensa possíveis debates sobre como seu povo se vê representado na forma futebolística, o nacionalismo associado ao esporte e a estreita relação deste com as artes espetaculares, no tocante às qualidades poéticas de ambos. Poder-se-ia indagar se o encontro de tantas pessoas (torcedores) num só lugar e com intuitos ora semelhantes ora dessemelhantes não se configura como uma espécie de teatralidade, levando em consideração sua qualidade de convívio e territorialização, segundo o argentino Jorge Dubatti, teórico e filósofo do Teatro.
O Gol Não Valeu, porém sua representação, sim; obviamente, não é a mesma coisa, mas para nós, é tão bom quanto.