Por Soraya Belusi – Horizonte da Cena
“Forma um bolo lá na frente”, instrui o homem na fila de entrada do teatro, como quem antecipa o que virá adiante. Em vez das cadeiras corretamente alinhadas, da comodidade do lugar marcado, da segurança presente na distância que separa palco e plateia, um platô que pode ser ocupado da maneira que o espectador preferir, deslocando-o de sua usual posição de passividade. Em De repente tudo fica preto de gente, não são apenas os corpos dos performers que se colocam em movimento. Mais que andar pelo espaço, o público é provocado a mover-se de seu estado habitual, a colocar sua própria fisicalidade em jogo e a expor-se também ao olhar do outro.
Foto de Ligia Jardim |
A criação de Marcelo Evelin e sua companhia Demolition Inc. não nos faz mais indagar, como sintoma das poéticas híbridas que se afirmam na contemporaneidade, se o que está diante dos nossos olhos é dança ou não. Esta pergunta parece não responder outra que se impõe de maneira ainda mais potente na fruição do espetáculo, ao voltar o questionamento não somente ao artista acerca dos procedimentos escolhidos por ele, mas, principalmente, a nós mesmos, espectadores, de como nos relacionamos com o que nos é apresentado.
O efeito que a proximidade entre performers e espectadores assume sobre o ato teatral-performativo, já ressaltado em teorias e práticas cênicas ao longo da história recente, parece ser também uma das forças de ação que constituem a explosão de percepções e possibilidades que De repente tudo fica preto de gente nos suscita. Em suas ondas de movimento – da aglutinação à degeneração, da integração à individuação, da estagnação ao deslocamento -, as massas corpóreas dos performers mobilizam também estados distintos no público, do desejo à repulsa, da entrega à negação, da aproximação ao afastamento.
Não se trata mais apenas de colocar em crise a cognição do espectador ou de provocar sua transição pelo espaço, mas também de fazer-lhe assumir uma postura diante dos corpos com os quais compartilha a experiência. A ocupação compartilhada entre criadores e espectadores no platô coloca em confronto, como num ringue, as tradicionais convenções de quem age e de quem é apenas o alvo da recepção. Está posta ao público a possibilidade de, assim como a massa que pode se tornar imprevisível, romper o círculo da convenção artística e social que o estabelece apenas como observador da ação do outro, permite que este desestabilize as fronteiras estabelecidas da espera e possa avançar rumo à ação, normalmente delegada somente aos artistas. O lugar institucionalizado do espectador é colocado em xeque.
De repente tudo fica preto de gente demanda do público estabelecer também um comportamento físico, tornando-se, assim como os performers, uma força propulsora das dinâmicas que se estabelecem no espaço e no tempo do acontecimento performático, permitir-se ou não o contato, entregar-se ou não ao contágio, realizar ou não o toque, deixar-se, ou não, perceber a si mesmo e ao mundo através da pele e dos rastros que nela ficam.