– Por Soraya Belusi –
A precariedade muitas vezes acompanha algumas produções apresentadas no Fringe , mostra paralela do Festival de Curitiba: seja pelos espaços pouco apropriados, pelo pouco tempo de montagem das produções ou pelo amadorismo dos trabalhos mostrados. Ainda assim, o público continua a prestigiar as “produções independentes” que têm, no evento, uma oportunidade de atrair os olhares dos especialistas e da plateia curitibana. Quando a precariedade dá lugar ao método e ao domínio do que se faz em cena, quase sempre surge um encantamento.
É essa a percepção após assistir aos espetáculos “Tchecov”, montagem do grupo local Ave Lola Espaço de Criação, e “Se Essa Rua Fosse Minha”, da Companhia Quinta Marcha, de Belo Horizonte. É a propriedade com a qual lidam com o material e com artesania no trabalho do ator o elo possível na relação entre duas montagens de caráter e resultado estéticos tão distintos.
Ao lançar um olhar sobre a montagem belo-horizontina, pode-se ressaltar a dramaturgia e direção de Juliana Pautilla, que conferem, à já conhecida personagem da plateia da capital mineira, uma história para ser vivida e contada. Mas o que pretendo destacar aqui – até pelo fato de ter perdido os minutos iniciais da apresentação, abstendo-me assim de comentar mais minuciosamente o trabalho de elaboração do espetáculo – é a habilidade da atriz Denise Lopes Leal de lidar com os elementos que compôem a experiência e a linguagem teatrais.
Macaxeira, personagem criada por Denise para “entreter” a plateia durante os intervalos entre as cenas da programação do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, torna-se, em “Se Essa Rua Fosse Minha”, Lady Macaxeira, uma alusão direta da dramaturgia que resgata a história de Lady Macbeth de Shakespeare. Porém, se há aqui um certo compromisso com a fábula apropriada, são as qualidades oriundas de um longo trabalho de composição e improvisação que se destacam no DNA da montagem.
Há uma maturação no trabalho do ator que, por se relacionar há bastante tempo com seu material criativo, confere a ele total propriedade da situação cênica. Denise parece transformar texto em improviso, e improviso em texto, conferindo um frescor e um estado de alerta e empatia entre cena e público. A presença de quem a vê – inclusive de quem está do lado de fora da ação teatral e do espaço em que a peça é apresentada – é constantemente evocada, ao ponto de tornar o público cúmplice na empreitada da construção do espetáculo – sem que para isso recorra a elementos de interação.
A falta de convívio a que são submetidos os moradores de rua na realidade se transforma em encontro na ficção teatral, porporcionando um outro olhar – repleto de doçura e humor sem com isso soar ingênuo – sob a condição a que submetemos esses indivíduos e a nós mesmos nas esferas de poder. Isso alcança ainda mais potência quando essa relação abortada na sociedade e revivida na sala de espetáculos ultrapassa as portas da Cassa Hoffmann, onde foi apresentada a montagem, e ganha as ruas do Largo da Ordem. É o espaço público e as relações de poder que nele habitam que passam a ser desestabilizados.
Mais uma vez é a noção de dedicação, esmero e propriedade na criação de uma obra teatral que se coloca diante dos olhos do espectador e que geram reconhecimento imediato da qualidade de “Tchecov”, espetáculo dirigido por Ana Rosa Tezza. A matemática milimétrica da composição no espaço, o trabalho gestual coreografado dos atuadores, a criação musical minuciosa e executada ao vivo: são tantos pequenos detalhes levados em conta na composição da obra que torna-se inquestionável o domínio técnico que tanto a encenação quanto os atores possuem sobre o material artístico.
“Tchecov” recorre à biografia e à obra do autor russo para prestar uma homenagem não só aos “inventores” do teatro moderno – incluindo Stanislavski e seu parceiro de Teatro de Moscou, Dantchenco – mas a toda história do teatro. Se o tema do trabalho se debruça sobre o nascimento do teatro do século XX, são as formas teatrais que o antecedem que servem de elemento ao trabalho dos atores e aos artifícios da direção. É como se o grupo escolhesse Tchecov e sua Gaivota para reafirmar que a qualidade de uma obra independe diretamente da contemporaneidade de sua formalização.
Ana Rosa Tezza, que também assina a dramaturgia da peça, não recorre às formas e sentidos que usualmente atribuímos ao autor russo, conduzindo o espectador a uma viagem no tempo e no espaço, em que as noções de realismo e interiorização dramática passam ao largo. A encenadora opta não pela ilusão ficcional, mas sim pelo artifício e pelo desvelamento desses procedimentos diante do espectador, que torna-se parceiro e testemunha não da apresentação de uma obra em si, mas do universo que compreende o processo de feitura de um espetáculo teatral. É como se, ao trazer à cena a história de Tchecov, o Ave Lola reapresentasse ao público de hoje, pelas vias inversas, as questões trazidas em A Gaivota.
(*) viagem a convite do Festival de Curitiba