Por Soraya Belusi
Cabíria e Marilyn resolveram fazer uma visita ao Cine Horto na mesma noite. A personagem de Fellini havia marcado um encontro com um travesti seu amigo, enquanto a outra loira mais famosa do cinema hollywoodiano veio mesmo para contar sua própria história. Desilusões amorosas, ambas tiveram. Teve também quem veio para palestrar. Apresentar um ponto de vista, desestabilizar certezas, brincar com as verdades. Papai, mamãe e os dois filhinhos vieram se confraternizar. Tirar a foto final, deixar registrado, na imobilidade dos porta-retratos, a escuridão dos seus desejos mais reprimidos. Sheila foi convidada para ensinar os presentes a fazer sexo seguro, mas muda de ideia e prefere lança-los ao precipício de suas convicções. Taubira já está acostumada a fazer isso. Digo a Taubira real, a ministra da Justiça francesa que impressiona pela incrível capacidade retórica e ideal humanista. Ela também esteve lá na noite de ontem, transfigurada em voz, corpo e convívio.
Cinco cenas fecharam esta edição do Festival de Cenas Curtas evidenciando, de maneira plena e diversa, as proposições que são lançadas para este encontro que se propõe ao risco (para artista e espectadores simultaneamente) que consiste ter a liberdade de mergulhar, mesmo que em 15 minutos, em uma experiência vertical com a pesquisa, com a linguagem, com o outro.
“O Quadro de Uma Família”, do Pigmaleão Escultura que Mexe (Foto Guto Muniz) |
Sheila, com direção de Wester de Castro, traz o relato de uma prostituta que foi convidada a dar uma palestra sobre sexo seguro. As placas de sinalização de trânsito que compõem o espaço carregam a capacidade visual de rápida comunicação e, apoiada pelos recursos da iluminação, servem de indicação das mudanças no tempo e no espaço.
A personagem transita entre narrar e, como em flashbacks, vivenciar em cena sua experiência (e sua capacidade de mentir, como ela nos lembra ao final da cena). A exacerbação presente no corpo e na musicalidade da voz encontra equilíbrio nos elementos como o figurino e a própria dramaturgia, com suas citações “filosóficas” e frases de duplo (e poético) sentido. A condução de Arethuza Iemini vai ganhando segurança no desenrolar da cena, sem perder o domínio de se equilibrar na corda bamba de aproximar-se do estereótipo que se tem da personagem da prostituta no cotidiano, mas não render-se a ele, tornando-o artifício de teatralidade.
Cabíria Corta o Cabelo propõe uma situação hipotética e ficcional. Traz para a cena a personagem do filme de Fellini e sugere um possível futuro para o fim trágico da película do cineasta italiano. Abandonada e sozinha, a jovem sofredora encontra um travesti que sonha em ser cabelereiro e, juntos, eles tentam encontrar outra alternativa de seguirem em frente.
O recurso de Abbondanza sair da plateia, além de um recurso de lançar o foco sobre Cabíria em um movimento de aproximação cinematográfica, nos permite também enxergar este novo amigo com um representante de nossa época, que invade o mundo da personagem felliniana, cruzando esses dois tempos. O próprio figurino de Abbondanza (figura que poderia muito bem ter saído de um filme de Almodóvar) e sua linguagem coloquial com gírias e expressões atuais parecem reforçar essa percepção, em contraste com a caracterização de época de Cabíria, muito fiel à reprodução da imagem protagonizada por Giulietta Masina.
Embora esses dois mundos e tempos pareçam, num primeiro momento, não fazerem parte do mesmo filme, aos poucos o espectador é transportado para esse outro tempo ficcional que foi criado. A capacidade técnica de Juliana Krause em manter um suave sotaque e um gestual contido e ingênuo todo o tempo facilita o percurso do espectador para este universo, em contrapartida, Francisco Thiago Cavalcanti captura o espectador pela empatia, porém, a cena, em certos momentos, se rende demais à tentação de valorizar em demasia a busca pelo riso.
A visualidade obscura e com referências expressionistas é o primeiro elemento de teatralidade que nos carrega para dentro de O Quadro de uma Família, cena que comprova a maturidade do ainda jovem grupo mineiro dedicado ao teatro de animação e à sua relação com o trabalho do ator e com o teatro visual. As máscaras aparecem nesse trabalho como um elemento que integra ainda mais essas linguagens, em uma composição sincronizada de movimentos entre atores, manipuladores e bonecos.
As texturas da luz e da sombra e os constantes grunhidos, ruídos, barulhos operam uma construção no tempo e no espaço que nos lança no estranhamento proporcionado pela imagem desta família que vai aos poucos se revelando animalizada, com atitudes próximas aos seus instintos mais primitivos ou arquetípicos, represados pelo doutrinamento que passa de geração em geração. É entre o desejo inconsciente e primitivo de “castrar o pai” e “possuir a mãe” que testemunhamos o que há por trás dessa falsa imagem social (e feliz) do familiar.
A partir da biografia de Marilyn Monroe, Tempos de Marilyn nos remete a um teatro de vozes, em que trechos de depoimentos, filmes e cartas escritas pela artista hollywoodiana são apropriados pelas atrizes Bia Borin, Debora Vivan e Priscila Oliveira compondo o material dramatúrgico-performático.
A cena se inicia com rastros de Marilyn que temos no imaginário, como se ela tivesse passado por aquele espaço segundos antes: o cigarro ainda está aceso, as roupas estão jogadas pelo chão, o abajur permanece ligado. Com roupas cotidianas, as atrizes adentram o espaço quadrado demarcado no chão, que pode nos remeter a uma tela, e através do texto e da relação entre elas apresentam (nunca representam) – de forma fragmentada, entrecortada e às vezes simultânea – facetas múltiplas de uma mesma mulher (a atriz, a mulher, a sex simbol), parecendo destacar, principalmente, suas fragilidades e inseguranças.
Nadja Naira e Rodrigo Bolzan em “Taubira” (Foto Guto Muniz) |
A tentativa de romper com o espaço pré-determinado da cena quebra positivamente a expectativa inicial do espectador de um único enquadramento, mas, da maneira como se estabelece, acaba funcionando apenas como um efeito de interação com o público e não como possibilidade de fricção e de ruptura formal.
Taubira realiza formalmente esse cruzamento de espaços entre palco e plateia, ator e personagem, performance e representação, discurso e ação. Durante a apresentação das cenas anteriores, Nadja Naira e Rodrigo Bolzan transitam pelo público, tornando-se também eles espectadores do outro (e de si mesmos). Quando a cena começa, a presença dos performers e do discurso se instala na cena através das vozes, enquanto o público está sob total escuridão. A ausência da visão e da materialidade do corpo do ator cede vez à reverberação da palavra no preenchimento do espaço.
Quando as luzes se acendem, Nadja e Rodrigo estão no centro da cena, mas não representando, ilustrando ou repetindo o discurso da ministra da Justiça da França, mas, sim, reforçando justamente aquilo que ela parece não dizer. Não é o que está no discurso que ganha visibilidade, mas sim justamente aquilo que o gerou, a ideia que sintetiza o conceito dos que se opõem a ele. É a heteronormatividade e a sua permissão de manifestação de desejo e afeto que nos é reforçada, em contraponto com as palavras de ordem pela liberdade e igualdade.
Um homem, uma mulher, um beijo. Um longo e quente beijo que vai se transformando aos poucos de ação excludente em ação coletiva, em ato de protesto, em voto de assembleia, em direito conquistado, em sintonia entre retórica e atitude, em convívio e afetação. Taubira esteve ali, não há dúvidas. Nós também. Ninguém escapou.