:::Por Soraya Belusi:::
O Grupo Bagaceira é reconhecidamente um coletivo que se dedica à pesquisa e à experimentação em suas criações teatrais. Um dos grupos referenciais da cena cearense, notabiliza-se pela dificuldade de ter sua produção enquadrada em uma única linguagem, transitando por diferentes poéticas e temáticas em seus trabalhos. “Interior”, espetáculo apresentado na programação do X Festival de Teatro de Fortaleza, é mais uma obra que ressalta essa inquietude investigativa do grupo.
Durante dois anos, nos intervalos de suas apresentações, o grupo dedicou-se a viagens constantes para o interior do Ceará, em busca de histórias, personagens e situações. O resultado dessa imersão tem caráter estético, mas também afetivo, rendendo uma bela homenagem aos artistas e à população do interior cearense, levando o espectador ao tempo da delicadeza.
É como uma conversa ao pé do ouvido. Em que o ato de ouvir histórias, vivenciado pelos atores-criadores durante as viagens, é revivido em cena pelo público, que é apresentado a duas velhinhas cujo peso do tempo se equilibra com a leveza da sabedoria. A sensação de familiar é o que potencializa o convívio: o ladrilho hidráulico no chão, a proximidade física dos espectadores, as canções de Dalva de Oliveira a tocar, o pedaço de bolo de banana; tudo remete a um outro espaço, ao lugar da memória, do antigo e ao mesmo tempo atemporal.
Mas o familiar abre também suas fissuras para o estranhamento, marcadamente presente na combinação dos figurinos propostos por Yuri Yamamoto – que também assina a direção do espetáculo –, assim como na utilização das máscaras expressivas, confeccionadas tendo camisetas como matéria-prima, remetendo não apenas a tradições teatrais, como a commedia dell’arte, quanto culturais, como as máscaras do reisado local.
A dramaturgia de Rafael Martins também propõe em seu jogo cênico o familiar e o estranho, partindo de uma situação fantástica para um universo cotidiano, numa linha que oscila entre o real e o grotesco. O encontro entre duas velhas centenárias, avó e neta, que insistem em não morrer, é o ponto de partida para surgir divagações sobre a velhice, a vida, a morte, o afeto e o tempo.
O caráter de artifício, de invenção, é ressaltado ao longo do espetáculo tanto por procedimentos da direção, como a retirada da máscara expressiva, quanto pelo texto dramatúrgico, que assume a sua impossibilidade de imitar, retratar, reproduzir o interior do qual se fala.
Um dos pontos altos da encenação, a capacidade de envolver o espectador e com ele construir um outro espaço de percepção, só se realiza efetivamente pela realização das atrizes Samya de Lavor e Tatiana Amorim, que demonstram controle e inventividade na construção e desconstrução das personagens, assim como nas improvisações que se fazem necessária na relação que criam com o público. O espectador, envolvido pela atmosfera de intimidade e familiaridade, compartilha suas mais afetivas memórias, tornando-se também ele elemento criador do espetáculo.