Por um manifesto “fechativo”
Por Marcos Coletta
Em um sete de setembro, data da Independência do Brasil, após uma tarde de prisões de manifestantes e da repetitiva truculência da Polícia Militar em Belo Horizonte, o bar Nelson Bordello recebeu o coletivo Toda Deseo que apresentou sua performance “No soy un maricón” na madrugada do sábado para o domingo, em clima de festa e descontração. Muitos dos que estavam no público naquela noite provavelmente haviam participado das manifestações do dia, uma vez que grande parcela dos frequentadores do Nelson Bordello tem se envolvido na crescente ebulição cultural e política que vem movimentando a cidade. O próprio Bordello foi um dos primeiros a ocupar a rua Aarão Reis, hoje um corredor cultural que abriga inúmeras manifestações criativas de tom contestatório como a Praia da Estação e o Duelo de MCs, resignificando uma região há muito degradada e marginalizada, em oposição direta ao projeto higienista que o prefeito Márcio Lacerda tem realizado na cidade. Mas, o que isto tem a ver com o Toda Deseo, agrupamento formado pelos artistas David Maurity, Igor Leal, Ju Abreu, Rafael Lucas Bacelar, Ronny Stevens e Will Soares, que simplesmente realiza um divertido show de travestis?
Surgido a partir do TCC em Teatro do ator Rafael Lucas na UFMG e reforçado pelos interesses artísticos dos demais integrantes, o espetáculo “No soy um maricón” se debruça sobre as questões do universo Trans, referenciado pela teoria queer¹ e pela estética camp², tema oportuno em tempos de Feliciano, bancada evangélica, polêmicas acerca do casamento gay e da laicidade do Estado, que popularizaram, como nunca antes, diversas discussões sobre os direitos LGBT. Portanto, além de um divertido show, a obra é fruto de uma pesquisa acadêmica e artística sobre a questão do gênero e do universo Trans. O espetáculo reúne pocket shows realizados pelos cinco atores impecavelmente “montados” de travestis, recheado por referências da cultura gay e da cultura pop, que vão de Freddie Mercury a vídeos populares do Youtube. Além de dublagens e coreografias “fechativas”³ muito bem executadas há pequenas cenas, situações que brincam com o melodrama, o nonsense e o exagero típico do universo de Almodóvar – o próprio nome do grupo e o título do espetáculo, em espanhol, nos remetem à filmografia do diretor que tão bem inseriu o corpo e o pensamento gay em sua obra. Enfim, todos os elementos que ao longo de décadas ajudaram a construir o que reconhecemos como o mundo gay (pelo menos em seus estereótipos). Quem não se lembra dos shows de Transformistas em pleno domingo à tarde no Programa Silvio Santos televisionado para todas as famílias do país há quase 30 anos? O Toda Deseovai direto ao que há de mais clichê em nosso imaginário, mas com uma consciência política e social explorada principalmente na forma.
Antes de serem artistas e pesquisadores, os integrantes do Toda Deseo são pessoas gays convivendo com uma sociedade homofóbica e heteronormativa em seu cotidiano, e que, inevitavelmente, imprimem esta tensão em seus trabalhos criativos. São, porém, gays ‘bem criados’, com acesso à educação e à cultura, socialmente bem integrados e com um pensamento crítico sobre mundo, diferentemente de muitos outros LGBT, principalmente os travestis e transexuais, geralmente impedidos ao acesso a direitos básicos, vítimas da marginalização e do preconceito em seus níveis mais violentos. Nenhum dos artistas do Toda Deseo são travestis reais, e provavelmente pouco experimentaram em suas vidas pessoais a complexidade desta condição, o que não os impede de se apropriarem com consistência deste universo para criar uma obra artística de cunho político e humor irônico. Neste aspecto, podemos retornar à Rua Aarão Reis ocupada por jovens de classe média, bem educados, bem alimentados, universitários, artistas e profissionais liberais, defendendo de forma criativa direitos civis junto à população de rua, às prostitutas e a diversas outras minorias e tipos humanos desfavorecidos – a sua causa é a minha causa, afinal, o que te subjuga me subjuga também.
“No soy um maricón” é um manifesto cênico que substitui o panfleto sisudo pela música contagiante, pelas coreografias, pela interpretação histriônica e caricata, pela sensualidade e provocação. Impossível não nos remetermos ao lendário grupo Dzi Croquettes que nos anos 70 se tornaram um ícone da contracultura com suas performances rebeldes e inteligentes. Os corpos andróginos e performáticos dos artistas de Toda Deseo ressoam como um grito de protesto em favor da liberdade, da dignidade e da valorização do ser humano, seja ele o que for. Inseridas em um meio de alto nível cultural e intelectual, as figuras trans de “No soy um maricón” se descolam da ideia de submundo e atingem outro patamar, rompem preconceitos artísticos (show de trans é espetáculo teatral?) e dialogam com um espectador que talvez não frequente as boates de travesti ou as ruas onde muitos destes se prostituem, aproximando-se de um público protegido da violência e da precariedade que permeiam suas vidas. Em dado momento, o humor extravagante dá lugar a denúncias reais e diretas contra a violência a travestis e transexuais, mas que logo devolvem o lugar para a festa, como se a regra ainda fosse o entretenimento acima de qualquer coisa – espelho de uma sociedade que se diverte com a Drag na tevê enquanto reprime seus próprios filhos homossexuais, espanca um travesti na rua e lava as mãos nos confetes da folia.
“No soy um maricón” exibe em cena o corpo gay de forma direta, sem mediação, sem pedagogismo e, principalmente, sem o deboche pejorativo que a tevê e o teatro comercial abordam o tema. As figuras desfilam sua exuberância (e sua fragilidade) com orgulho e vigor, olham nos olhos da plateia como quem dizem: “aqui somos dominantes, e aqui estamos não só para diverti-los, mas para fazê-los conviver com a nossa natureza”. E se no show de Transformistas do Programa Silvio Santos a figura trans já podia frequentar a casa da família brasileira ainda que de forma velada, sem que se tocasse no tabu da sexualidade, o Toda Deseo enfatiza justamente este tabu, como se a diversão fosse apenas um pretexto. Mais interessante é perceber que todo este cunho político não é incitado a partir do discurso, da palavra, mas da presença mesma dos corpos – um manifesto físico. Na noite de sete de setembro de 2013, “No soy um maricón” foi calorosamente aplaudido pela classe artística, cultural e intelectual da cidade, sua potência visual merece agora ser testada em bares da Savassi, em boates gay, em bailes funk, no Automóvel Clube, ou no meio da rua ao lado do pastor que brada suas condenações morais.
FICHA TÉCNICA:
Direção: Ju Abreu e Rafael Lucas Bacelar
Dramaturgia & Elenco: Davidson Maurity, Igor Leal, Ju Abreu,
Rafael Lucas Bacelar, Ronny Stevens e Will Soares.
Coreografias: Ronny Stevens e Will Soares.
Orientação teórica: Igor Leal
Participação especial: Fábio Schimidt
Workshop de make: André Silva [AnDrag]
Fotografia: Déa Vieira
Produção: Anderson Ferreira, Camila Félix e Dominique Macbét
Comunicação & Idealização: TODA DESEO
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¹ A teoria Queer surge no âmbito acadêmico para tratar da discussão a respeito do gênero e da identidade sexual, aprofundando os estudos sobre as minorias sexuais ao recusar as classificações simplificadas como ‘heterossexual’ e ‘homossexual’.
² A estética Camp sugere o comportamento exagerado, não natural, desviante, nos limites do mau gosto ou do cafona. Também remete ao visual exuberante, exibicionista e provocante, típicos da contracultura e da caracterização de Transformistas e Drag Queens.
³ O termo ‘Fechação’, próprio do mundo LGBT, é um termo informal que se refere a um tipo de comportamento estilizado que caracteriza o corpo gay através de trejeitos, movimentações exageradas, poses artificiais e empostação de voz. É a potencialização de uma corporalidade que vai contra à forma masculina de se portar socialmente.