– por Clóvis Domingos-
Texto panorâmico a partir da cobertura crítica da segunda edição do PAN (Potência das Artes do Norte).
Do Repente (Lamira Artes Cênicas. Foto: Divulgação do Grupo)
Venho escrevendo esse ensaio desde a abertura do PAN que ocorreu na noite de 23 de abril de 2021. Apresento aqui uma espécie de diário, um caderno de notas, uma produção imagética e poética, um relato de viagem, uma carta endereçada aos artistas, curadores, espectadores e colegas do Núcleo de Crítica do evento, bem como aos leitores interessados. Uma escrita flutuante através da navegação por inúmeros trabalhos cênicos, debates abertos e conversas muito instigantes. Tudo isso esteve presente e de forma intensa nas águas desse rio caudaloso que foi o PAN.
Já no primeiro dia do festival, mandei uma mensagem para Cláudio Zarco (artista de Rondônia que atualmente mora e faz Pós-Graduação em Minas Gerais), contando a ele a novidade e relembrando suas indagações feitas há alguns anos sobre meu desconhecimento da arte produzida no Norte do país. O chaveiro com formato de boto que ele me trouxe de lembrança de Porto Velho passou a habitar minha mesa nesses últimos dias junto à sua preciosa fala: “aproveite essa oportunidade, se jogue nessas águas e se deixe molhar, afundar e refrescar”.
Para mim artista, pesquisador e crítico da região Sudeste foi então a chance de conhecer um pouco da expressiva cena do Norte do Brasil. Mais de um ano estamos vivendo com uma pandemia e pelo PAN a arte do teatro mais uma vez se tornou nossa companhia. Então já de início quero agradecer pelo convite que me chegou como um presente, e mais, uma forma de aprendizagem única, uma ampliação do meu olhar sobre os teatros brasileiros, um refazer as rotas e um questionamento sobre as historiografias hegemônicas.
Nessa experiência tão múltipla e desafiante, ativei a escuta como modo de produção crítica e dialógica afim de que em minha escrita pudesse ressoar e reverberar um pouco do que ouvi e articulei, trazendo à baila uma série de pensamentos, saberes e fazeres gestados coletivamente, tudo isso pela beatitude e força dos encontros.
O PAN é o primeiro festival brasileiro online após o advento da Covid-19 e já chegou provocando, buscando diminuir distâncias, tentando reparar narrativas consideradas oficiais. Nessa segunda edição tivemos a apresentação de 14 espetáculos, algumas oficinas, a formação de um Núcleo de crítica, rodas de conversa com artistas e público, além de mesas com curadores e programadores brasileiros.
A partir de agora trago para esse texto as anotações e reflexões feitas durante essa inesquecível viagem. Outra imagem me revisita: a entrega de flores azuis feitas de papel e com um poema escrito à mão que era entregue para os espectadores no espetáculo Ainda Bem Que Não Tive Filhos (Grupo Garagem/AM). Penso na pura artesania de que é feito o teatro. E que mesmo de modo remoto é possível sentir à flor da pele e da tela a pregnância dos trabalhos. Com essa imagem floral que não mais me saiu da memória, a transformo num remo poético para iniciar a travessia por essas navegações estético-políticas.
Abrindo os caminhos
Ôxe menino tu é tão bonito
Tem flores tantas por sobre o cabelo
Ah eu peço arrego
Diante de ti ó nego
Ah eu peço arrego Ogum
(Ogum. Casa de Caba)
A abertura do PAN foi uma celebração coletiva com a criação de uma festa comandada pela artista Gibona MonAmour. Nada melhor do que o dia de São Jorge Guerreiro (Salve Ogum e sua proteção para nossas batalhas pelas artes!), para dar partida ao evento. Entre apresentações de números artísticos e muitas brincadeiras, tivemos a participação de uma cartomante que inclusive tirou a carta do deus Indra trazendo a seguinte mensagem sobre a continuidade futura do Festival: “como esse deus fez a chuva voltar após a estiagem, a decisão de fazer acontecer novas edições do PAN é muito favorável e depende da união de todos os envolvidos”. Os participantes vibraram com o recado enviado pelo oráculo. Oxalá em breve o Festival possa ser realizado de forma presencial. Então misturando arte drag, muito forró (a playlist da Ana sempre nos animava antes das apresentações) e cartomancia, já se podia sentir a alegria, o encantamento e o desejo de confraternização que marcariam os próximos dias.
No meio do rio: espetáculos-chibata e “mulheráguas”
Nos primeiros dias de Festival os espetáculos assistidos foram materiais e registros filmados das apresentações dos artistas e grupos. Penso muito na crítica e pesquisadora Daniele Avila Small (que também participou como coordenadora do Núcleo de Crítica e mediou os debates) e seu convite para o ato de reencantar os arquivos. Como trazer calor e produzir novos olhares sobre esses trabalhos? Ainda que conhecidos para muitos, para outros se tratava de uma experiência inédita. E mais: como ver esses trabalhos com a distância do tempo em que foram criados e agora diante de novos arranjos e contextos? Quais conexões e reconfigurações se tornariam possíveis? Que memórias seriam ativadas? Quais outras discursividades seriam produzidas? O fato de também assistirmos aos espetáculos no mesmo horário, compartilhando assim uma dimensão temporal, resgatava de alguma forma o frescor de uma reunião, um agregar sensibilidades, uma atenção conjunta. Uma nova plateia se constituía. Mas também ao longo do festival foi possível acompanharmos trabalhos criados e adaptados para as redes digitais mesclando a linguagem audiovisual com manifestações cênicas.
A diversidade de trabalhos (tanto temática quanto de linguagem) parece ter sido a tônica da curadoria nessa edição visando uma maior representatividade da região. Em minha avaliação, a mistura de propostas se revelou muito profícua pela possibilidade de vislumbramos poéticas muito distintas, que numa visada caleidoscópica, aponta para a riqueza de fios de uma colcha colorida e feita de muitas tramas. Assim nenhuma estética se tornou protagonista, o que exigiu que nosso contato com cada obra se desse de forma muito particular. Aí entra a dimensão da singularidade, isto é, conversar com cada trabalho a partir de modos muito distintos e atendendo às suas provocações e convocações específicas.
Estética dos Restos (vídeo-performance de Amanara Brandão Lube)
No PAN a polifonia, a complexidade, o diálogo entre o popular e o erudito, a coexistência como modo de habitação, a circularidade, a qualidade estética dos trabalhos, a intertextualidade e nacionalização dos clássicos na perspectiva de uma denúncia social (muito forte em Tartufo-me do Buia Teatro do Amazonas ao abordar os efeitos nefastos do fanatismo religioso), todo esse conjunto revelou as potências existentes nas artes do Norte.
A força criadora das mulheres com suas criações ético-poéticas também merece ser destacada nas escolhas feitas pela curadoria. Chica Fulô de Mandacaru (Cia Casa do Circo/AP), Sobre Lourdes e Viviane (Viviane Palandi/AM), Ainda Bem Que Não Tivemos Filhos (Grupo Garagem/AM), Uma Estética Dos Restos (Amanara Brandão Lube/RO), Submersas No Gapó (B. Onça, Fabíola Pena e Mônica Gouveia de Belém/PA), A Bolha (Nupramta/AM) e Subsolo (Grupo Ateliê 23/AM) permeiam questões do universo feminino.
Chica Fulô de Mandacaru (Cia Casa do Circo – Foto de Ramon Aquim)
Chica Fulô de Mandacaru e Sobre Lourdes e Viviane falam de partidas, voos e transformações. Em Chica através de uma dramaturgia poética e musical, o tema tratado é o da violência e abuso contra a mulher que é abordado de maneira leve, mas sem perder a força da denúncia. Até porque a violência está expressa na linguagem das personagens que habitam a aspereza desse universo exclusivamente masculino no qual essa mulher “que não aceitou ser a costela” decide abandonar. A fuga de um ambiente hostil é para Chica a possibilidade de escrever outras histórias.
Sobre Lourdes e Viviane (Foto de Tiago Bassani)
Em Sobre Lourdes e Viviane, uma vídeo-performance que une mãe e filha, o que se vislumbra é a ideia de continuidade, de reencontro de gerações, o ato da espera, a casa vazia, o tempo feminino se perpetuando através de imagens que nos convidam a pensar as chegadas e saídas. A mão materna que impulsiona o voo é a mesma que sustenta o retorno e a pausa. A mão da filha conduz a mãe pelas asas do fazer artístico. Arte e vida interligadas: não são personagens, mas sim Viviane e Lourdes juntas numa elaboração singela que pode se configurar como um processo de cura. É sobre elas e sobre todas as mães e filhas. Também é um pouco sobre nós.
Reverenciar a mãe e as avós em sua sabedoria ancestral está presente em Submersas No Gapó, uma obra que nos convida a uma meditação sobre o “tempo espiralar” (conceito proposto pela professora e pesquisadora Leda Martins para desvestir os eventos de uma cronologia linear os colocando em constante processo de atualização e transformação). As artistas fazem um mergulho no rio das memórias, um ritual para nos desacelerar, habitar uma temporalidade estendida e mítica, acionar lembranças que são presenças. Como decolonizar o tempo, vivenciá-lo fora da pressa ocidental que nos sufoca, adoece e nos rouba a vitalidade? A câmera tão próxima às atrizes e que vagueia pelos objetos da casa consegue a proeza de jamais invadir a cerimônia que ali acontece (não viola o delicado véu que cobre e protege o sagrado assim como não quebra os momentos de silêncio), mas pelo contrário, nos permite fazer uma imersão junto ao trabalho.
Submersas no Gapó (Foto: Divulgação do grupo)
E ainda nessa relação entre feminino, maternagem, vida e ancestralidade penso que propostas como Estética Dos Restos, A Bolha e Subsolo trazem profundas reflexões para se pensar na saúde e cura da Mãe Terra. Quanto vale a vida em tempos de desmatamento, poluição, capitalismo desenfreado e mortes em massa causadas pela pandemia? Como preservar a vida cósmica? Busco em Ainda Bem Que Não Tivemos Filhos um pouco de ar: a imagem das repetidas quedas, a beleza de se assumir os fracassos, a nossa fome de amor e de relações que possam nutrir nossas existências. Renascimento. Não mais negar nossas faltas e fragilidades e fazer do amor potência e gesto de solidariedade.
Interessante também sublinhar que no intrigante espetáculo Última Estação (Cia Arteatro/RR) os personagens masculinos que estão à espera de um trem que nunca chega sejam interpretados por mulheres. Para mim é algo sintomático (ainda que saiba pelo relato do grupo que naquele momento não haviam atores para assumirem os papéis): sugere um certo desmoronamento de um masculino hegemônico que não sustenta mais a força da vida, que fica dando “murros em ponta de faca”, que precisa rever os modos de construir o mundo e que por uma lente feminina pode reconhecer por quais caminhos tem trilhado.
Já no debate promovido após a apresentação de Vale a Pena Rir de Novo (Grupo Matutagem/ PA) discutimos a recusa desses artistas em perpetuar certos discursos misóginos (ainda presentes nos tradicionais números circenses) e afirmar a função política e libertária do humor e do riso. A comicidade da palhaçaria feminina ganha força hoje ao subverter os códigos machistas trazendo discussões de gênero para fortalecer a luta emancipatória das mulheres. Em suma, no rio PAN as “mulheráguas” (essa expressão foi trazida no delicado Submersas No Gapó) tornaram nosso percurso uma travessia inquieta e nos implicaram em conversas que se fazem urgentes.
Em trabalhos como Agô (Menina Miúda Produções Artísticas/AM) e Cabô (AM) escutamos mais uma vez os pedidos de clemência vindos das vozes femininas das mães diante do genocídio das populações indígenas, negras e periféricas. No vigoroso espetáculo de dança Agô temos no início e no fim a imagem das Pietás chorando a brutal perda de seus filhos. Já em Cabô (performance urbana realizada por Vitor Rocha) o grito materno incomoda e rasga o espaço urbano não mais compactuando com o branco projeto de paz e cordialidade. Em ambas as propostas a morte deixa de ser número e notícia, pois “a dor da gente não sai no jornal” (trecho de uma letra de Chico Buarque). O projeto colonial e escravocrata se atualiza cotidianamente no abuso policial, na segregação econômica, no extrativismo vegetal e na necropolítica de Estado.
Agô (Foto de Ingrid Anne) e Cabô (Foto de Mikaela Raícham)
Esses dois trabalhos podem ser lidos como Poéticas do Enfrentamento: (termo cunhado pelo diretor Idelino Júnior em suas pesquisas sobre performance, violência e espaço urbano), isto é, a arte num corpo-a-corpo com a cidade, em confronto com os poderes instituídos. Agô e Cabô apontam para as fraturas e desigualdades que dizimam muitas vidas sem que haja possibilidade de reparação histórica e justiça social. Mas pelo exercício artístico essas vidas, corpos e memórias retornam e se infiltram no espaço público, provocam ruídos, tentam provocar mudanças.
A Bolha (Nupramta. Foto: Divulgação do Grupo)
As vídeo-performances Estética Dos Restos e A Bolha, apresentadas no mesmo dia, têm em comum a utilização do plástico como elemento principal. São trabalhos mediados pelo movimento das imagens, dramaturgias geradas pela câmera e a utilização desse material (o plástico) dialoga com nosso contexto pandêmico: a falta de ar, a proteção pelo uso da máscara, o isolamento social, a solidão nossa de cada dia, a depredação das reservas naturais, o Brasil num leito de UTI. Como não morrermos estrangulados? Quem pode pagar por um cilindro de oxigênio? Em quais bolhas estamos aprisionados? Até onde é proteção e até onde se trata de repúdio à diferença? O que pode o corpo e a arte em tempos de ataque e censura a cultura e criminalização dos Direitos Humanos? Como não aderir às narrativas fatalistas de um “fim de mundo” e substituir medo e esperança por indignação e imaginação?
Subsolo (Ateliê 23 – Foto: Divulgação do Grupo)
Em Subsolo procuro uma metáfora de como pensar o PAN e as artes hoje: remexer a terra, insistir na poesia como resposta diante do horror e da barbárie, transformar o esgotamento em divertimento, fazer da pedra que rola o “jogo da amarelinha” e também criar ajuntamentos e aquilombamentos estético-afetivos. Como afirma a artista mineira Zora Santos sobre os tristes poderes que nos rodeiam: “eles são muitos, mas não podem voar”.
Hora da despedida
Eu já estou de retirada,
É madrugada,
Dou lembranças aos senhores.
Sinto uma dor,
Dono da casa,
Até para o ano s’eu vivo for.
Adeus, boa sorte para todos,
Eu já me vou,
Já vou me retirar.
Tenho saudades dessa noite tão bonita,
E meu coração palpita
Que eu não posso tolerar.
(Despedida. Antônio Nóbrega).
A canção acima foi um presente ofertado no encerramento do PAN pelo artista João Vicente do Lamira Artes Cênicas (TO), grupo que nos trouxe a alegria e a resistência dos corpos através do bailado e da ginga presentes no contagiante Do Repente. Um trabalho que mistura música, dança, teatro (de rua e commedia dell’arte) e que comunica efusivamente com o espectador. Terminar a Mostra com esse espetáculo foi um acerto da equipe de programação devido ao seu apelo festivo e eletrizante. Senti meu corpo inflamando.
Nessa viagem de sete dias acompanhando os espetáculos e escutando diversos artistas me ficou a certeza de que as potências são mais revolucionárias do que os poderes instituídos. Nessas aglutinações criativas e aglomerações virtuais constatei que as produções do Norte têm muito a nos ensinar sobre outros teatros brasileiros. E sim, essas produções poderiam ser mais reconhecidas e valorizadas em outros circuitos, editais de financiamento, festivais, publicações, espaços acadêmicos etc. O PAN buscou também revelar as produções artísticas dos estados do Norte para o próprio Norte. Nos debates que sucederam os espetáculos muito se falou sobre a importância de erguer pontes, fomentar trocas e articulações, reduzir as distâncias.
Lá Vem O Rio (Grupo CETA – Foto de Victor Lucas Oliver)
Como nos lembram os mestres populares, artistas e pensadores decoloniais, precisamos decidir de que forma e com quem iremos construir vínculos. Vamos nos associar à tirania e opressão dos discursos neoliberais do Estado? Ou ouviremos a sabedoria ancestral nos convocando a outros estados: irmanar com as redes que sustentam a vida, os afetos, as lutas, as montanhas e os rios? A potência é do campo da invenção e da conversação, o oposto do poder que almeja a conservação. A potência compartilha (deseja mais encontro de potência para produzir assim mais energia), ao passo que poder isola e consome as forças. A potência do rio não busca a magnitude e o querer se tornar mar porque já sabe de sua vastidão, seus alcances e a quem se destina.
Agora em terra firme, mas ainda balanceado pela maré, sofro essa ressaca benfazeja e penso que a prática da crítica pode adubar esse solo e jardim das artes cênicas atuais o nutrindo com essa água potente trazida e bebida no rio PAN. O festival não termina aqui. Como podemos continuar falando dele, escrevendo e reverberando os trabalhos, gestando parcerias, conversando com os grupos e artistas, fazendo a correnteza seguir por novos fluxos?
O PAN plasmou um mosaico estético ao reunir múltiplos modos de pensar e fazer teatro e a crítica pode ser essa “terceira margem do rio”: cada vez mais porosa, entrópica, anti-colonial, devir-peixe, tátil, em processo, entre oralidade e escrita, ensaiando gestos de deslocamento para interromper o sistema de dominação presente em certos nichos centralizados e padronizados da arte. Se abrindo ao desconhecido, às turbulências e indagações. Em crise e criação. Permitindo que as certezas se dissolvam e outras teorias brotem. Daí, lá vem mais teatros. E como nos lembra o Grupo CETA (AM) com seu lúdico espetáculo: “Lá vem o rio”.