Esta crítica integra a cobertura da 16ª edição do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte (FIT-BH) e foi escrita a partir do espetáculo Desimportâncias, da Insensata Cia. de Teatro (BH), apresentado no Teatro Marília.
– por Victor Guimarães –
A noção de “teatro entre infâncias”, evocada pelos integrantes da Insensata Cia. de Teatro ao final do espetáculo para refletir sobre sua própria prática, dá o que pensar. As infâncias em Desimportâncias são várias e variam. De saída, está a referência a Manoel de Barros, um poeta constantemente empenhado em recuperar uma infância da palavra, num jogo com a linguagem que tem muito de brincadeira infantil, no melhor sentido possível de liberdade e experimentação. A poesia de Barros impregna a dramaturgia, as instalações que organizam o percurso do espetáculo, as canções, os figurinos. Em diálogo com esse universo poético, as memórias infantis dos atores-dramaturgos-diretores compõem uma linguagem textual e visual impregnada de uma noção metamórfica da infância, como esse tempo-espaço onde qualquer coisa pode se transformar em outra coisa: um menino pode se tornar uma goiabeira, assim como um jiló pode ser um boi.
Fotos de Guto Muniz
Aqui, um adulto também pode se tornar uma criança, e vice-versa. No espaço-tempo do espetáculo, a infância é um convite geral, a ser vivido aqui e agora, . Tudo se organiza como um passeio pelo espaço do teatro e suas imediações, como uma gincana que envolve as crianças e os adultos presentes, juntos ou misturados, separados ou com os papéis sociais invertidos. Os quatro atores-músicos-brincantes encarnam personagens, com memórias que conduzem cada momento cênico, mas também se desdobram em propositores e gestores de uma comunidade provisória mutante. Na entrada, a plateia é convidada a adentrar a sala do Teatro Marília, a responder a uma entrevista num telefone de lata e a participar de uma percussão coletiva com latas de diferentes cores e tamanhos, que terminarão penduradas numa árvore, fazendo as vezes de passarinhos. Na segunda estação, no foyer, são as crianças que conduzem os adultos em um percurso competitivo por uma goiabeira-labirinto feita de bambu. Enquanto os pequenos se arvoram em organizadores do jogo, com seus comunicadores portáteis cheios de instruções, os grandes, vendados e com fones de ouvido, se estatelam no chão para disputar uma goiaba-troféu sob os gritos da torcida.
Numa sala menor, o convite é para gente pequena e gente grande: transformar frutas O público adulto e infantil, agora indistinto, é dramaturgo e figurinista, ator e diretor de um espetáculo que depende do engajamento no jogo. Naquela tarde do dia 22 de junho, o drama improvisado envolveu uma sereia-banana que atraía a todos os seres híbridos com seu canto para o fundo de uma lagoa, até que um hipopótamo-pimentão os resgatava da morte iminente. Perto do final, antes da quarta e derradeira estação do percurso, crianças e adultos são divididos em dois grupos incomunicáveis. Enquanto nós voltamos ao teatro para uma cena-conversa com uma das atrizes, as crianças desaparecem de vista, para retornar, de súbito, em cima do palco. Na cena final, flutuando sobre um cenário lindíssimo, feito de nuvens de algodão e passarinhos de papel, a criançada tece uma coreografia silenciosa, seguindo as instruções sussurradas nos fones de ouvido enquanto se movimentam pelo espaço do teatro.
Desimportâncias se autoimpõe armadilhas traiçoeiras e consegue desviar de todas. Como não tratar a infância contemporânea como uma miragem paternalista, impondo a ela uma versão excessivamente nostálgica? Afinal de contas, as memórias dos atores adultos têm muito pouco ou nada a ver com o cotidiano das crianças urbanas de hoje. Por outro lado, como não impor ao público adulto uma infância pré-fabricada e previsível, tediosa porque excessivamente condescendente, da qual estamos excluídos de antemão?
Diante desses desafios, o segredo é a mistura permanente. Está lá a afetação do momento inicial, com um ator que tem algo do animador de festa infantil, mas também está lá a atuação sóbria de Cláudio Márcio, com seu extraordinário tom menor, quase sussurrado. Estão lá as latas coloridas e as frutas com os palitinhos, as memórias do interior e do mato, mas também estão lá os fones de ouvido e os comunicadores portáteis, e a contemporaneidade exuberante das instalações. Em meio à nostalgia inevitável, Desimportâncias encontra um caminho fresco e imprevisto. Um convite às crianças de hoje para adentrar uma outra infância, talvez distante da sua, mas igualmente excitante, e um convite aos adultos para experimentar um estado inaugural da linguagem, uma infância do teatro.
No fundo, o teatro – ao menos um certo teatro – tem sempre algo de brincadeira infantil: na suspensão da descrença que é sua mola propulsora, na metamorfose que é sua carne viva, ser outro por um par de horas é sempre a tarefa do ator – e aqui, também, a nossa. Essa noção – antiga, talvez – do teatro é aqui a um só tempo recuperada e transformada, na medida em que as separações tradicionais (ator/espectador, diretor/público, criança/adulto) se desfazem e se refazem no jogo das metamorfoses, mas algo dessa infância do teatro ressurge, enfim. No final, somos nós que encontramos a infância onde menos a esperávamos: sentados confortavelmente nas cadeiras do teatro, diante do palco italiano, vemos uma imagem tão bela e excitante quanto uma goiaba roubada vizinho.
Ficha técnica:
ATUAÇÃO, DIREÇÃO, DRAMATURGISMO E TRILHA SONORA: Brenda Campos, Cláudio Márcio, Dário Marques e Keu Freire
CRIAÇÃO DE LUZ: Tainá Rosa
CENOGRAFIA E FIGURINOS: Daniel Ducato
COSTURA: Carlos Selim
PRODUÇÃO: Ju Abreu e Ana Cecília
ORIENTAÇÃO ARTÍSTICA E TEÓRICA: Júlia Guimarães Mendes
IDEALIZAÇÃO E COORDENAÇÃO GERAL: Brenda Campos e Keu Freire
DESIGNER GRÁFICO: Renê Duarte
REDES SOCIAIS: Letícia Leiva e Matheus Carvalho
REALIZAÇÃO: Insensata Cia de Teatro