por Soraya Belusi (*)
Não há a soberania de uma única forma teatral. Se até poucas décadas bastava-nos a divisão entre dramático e épico, na cena contemporânea convivem as formas narrativa, dramática, lírica e performática, entre outras, o que torna os trabalhos, muitas vezes, inclassificáveis sob categorias pré-determinadas. Pelo menos três montagens que integram as Mostras Especiais e o Fringe 2013 lidam com esse rompimento de fronteiras, com a possibilidade de misturar referências distintas na composição do espetáculo.
Em O Diário do Último Ano, do coletivo Paisagens Poéticas, de Belo Horizonte, os dias derradeiros da vida da poeta portuguesa Florbela Espanca servem de mote à atriz e cantora Julia Branco. Um véu encobre a cena e um fado parece anunciar a morte que está por vir. Tendo o lírico como ponto de partida, a performer transita também entre as formas narrativa – quando apresenta a história que será contada e em outros breves momentos do espetáculo – e dramática, quando, ao mesmo tempo, busca criar uma espécie de “perfil psicológico” da personagem.
Foto Annelize Tozetto |
Julia, com seu corpo e voz, constrói belas imagens, embora alguns dos elementos da cena tendam a reforçar um ideal de feminino um tanto esgarçado, com o uso de elementos já demasiadamente utilizados, como a camisola transparente, a lingerie e um colar de pérolas. A perturbação de Florbela assume a questão central, muitas vezes reforçando uma imagem de histeria, o que despotencializa o poder poético do que é dito. Os poemas são lançados como se aquelas palavras não fossem plenas de sentido, com um certo desiquilíbrio na junção entre a palavra e a cena. A multiplicidade de formas, neste caso, não potencializa as camadas de encenação e dramaturgia como poderia, causando certa irregularidade.
Cristiano, Cão Louco, do Grupo Obragem, de Curitiba, revela grande potência na relação de inversão de papéis que realiza entre dois homens de posições políticas e éticas distintas. Com um texto que beira o filosófico, Olga Nenevê proporciona um mergulho nos conflitos do humano, em que carceireiro e prisioneiro parecem estar presos a uma mesma sina, cujos lugares podem ser trocados a qualquer momento.
A encenação é baseada na relação entre os dois atores, Eduardo Giacomini e Leando Daniel, que, num jogo muitas vezes violento, conseguem sustentar em cena a complexidade do texto. Este, em alguns momentos, parece perder-se na tentativa de estabelecer frases de efeito poético, mas guarda em si grande potencial.
Cena de Cristiano, Cão Louco (Lina Sumizono) |
Assim como a encenação, em que alguns signos são trabalhados num primeiro momento de maneira inventiva e sutil, mas que, ao decorrer do espetáculo, são excessivamente marcados e repetidos, entregando de bandeja ao espectador os sentidos que ele poderia criar. A edição do espetáculo busca fragmentar a cena de modo a desconectá-la de um tempo cronológico o que acaba não acontecendo já que as cenas são enumeradas, mesmo que fora de ordem, para o espectador.
Na Mostra Novos Repertórios, a Pausa Cia. de Teatro apresentou A História de Marileide e Michael Jackson, com texto de Fernando Bonassi. A peça traça um paralelo entre a vida desta mulher simples, trabalhadora e apaixonada pelo popstar, e o rumo trágico que o fim da vida deste levou. A direção de Rafael Camargo opta por narrar essas histórias paralelas, mas cruzadas, como se fosse um programa de rádio, gerando uma série de efeitos na relação com a plateia.
O primeiro deles é a não-identificação com os personagens. Os atores, sentados em uma mesa de transmissão, dão vida a esses locutores que não estabalecem a menor relação com o espectador e nem mesmo com os personagens que narram. Não há emoção visível. Isso gera uma frieza à encenação bastante instingante, permeada pela ironia que elementos como a trilha de fundo, destes programas de rádio da madrugada, são capazes de criar. Ao mesmo tempo, a manutenção dessa estrutura, marcada pela repetição, depois de um determinado tempo tende a se esgotar.
Os tons da encenação e da atuação dos atores, marcados por uma certa indiferença, destacam questões bastante pertinentes, como a solidão e a descrença não apenas de Marileide e Michael Jackson, mas de todos os que estavam presentes ali.
(*) A jornalista viajou a convite do evento