— por Daniel Toledo —
Crítica do espetáculo Stereo Franz, da companhia [pH2] Estado de Teatro (São Paulo)
Logo de início, já se percebe que há algo de estranho na banda que recebe o público do espetáculo Stereo Franz, realizado pela companhia [pH2] Estado de Teatro, de São Paulo. Sob o comando de um virtuoso vocalista com trajes de açougueiro, a banda assume o palco do improvisado bar onde se organizam os espectadores, criando uma atmosfera de tensa empatia que contamina os primeiros momentos do espetáculo. Enquanto isso, Franz e Maria, personagens aos quais ainda seremos apresentados, cruzam por várias vezes o espaço, dançando e beijando-se como se fossem pessoas comuns, como se fossem apenas mais dois freqüentadores daquele bar. Mas eles não são.
Inspirada em Woyzeck, obra mais reverenciada do dramaturgo alemão George Buchner, a montagem recria à própria maneira a história de seu personagem-título – aqui Franz – e sua esposa, chamando atenção à loucura e à violência que surgem a partir de quadros sociais marcados por degradação, precariedade e subordinação aos mandos e desmandos do outro. Ainda que tal situação de subordinação fique clara pelos constantes chamados – prontamente atendidos – que ambos recebem de seus “superiores”, rapidamente se vê Franz quanto Marie, sua esposa, apresentam alguns desvios.
Enquanto ele enxerga e fala demais, por vezes tomando para si o sofrimento causado por boa parte das opressões da história e do mundo, Marie não consegue parar de se mexer, como se de fato já não coubesse no estreito lugar social que lhe parece reservado. Em permanente trânsito entre o bar onde estamos e o espaço externo ao teatro, o qual acessamos pela porta de entrada, quase sempre aberta, e também por imagens geradas por câmeras instaladas na área externa e exibidas em televisores instalados dentro do bar, como parte da cenografia da montagem.
A partir desse jogo de entrar e sair, de ocupar o campo e o extracampo, constituem-se dois universos ao mesmo tempo conectados e bastante distintos, marcados, respectivamente, por sucessivos monólogos dirigidos ao público e ações performáticas cuja potência se apóia, sobretudo, em aspectos visuais e composições entre os corpos dos atores e os diferentes espaços que integram a área externa. De um lado, o bar surge como uma arena delirante, na qual somos constantemente atravessados por relatos e reflexões em que ciência, misticismo e invenção se misturam de modo perturbador. De outro, a área externa serve como mecanismo de inserção das personagens em um contexto mais concreto de existência, reforçado pela presença de um lixeiro que, em meio às próprias atividades, vez ou outra faz companhia a Franz e Marie.
Trazendo os olhos e a língua como recorrentes órgãos-metáforas que remetem às capacidades de enxergar a realidade e de se expressar sobre ela, Stereo Franz parece defender a consciência e a voz como importantes ferramentas de transformação, ainda que, no fim das contas, o desenrolar dos acontecimentos parece deixar pouca esperança em relação à possibilidade de mudança.
Gradativamente, Franz, Marie e também o lixeiro rebelam-se, cada um ao próprio modo, em relação a uma realidade cujo horizonte de aspirações lhes parece bastante restrito. Os esvaziados – e por vezes cômicos – discursos conduzidos pelo vocalista-cientista-açougueiro e a tecladista-vidente-astróloga passam, então, a conviver com recorrentes questionamentos e reflexões de Franz acerca de vidas que, tal qual sua própria existência, parecem valer muito pouco.
“Por que Deus não apaga o Sol com um sopro, para que tudo gire na desordem?”, pergunta Franz, à certa altura, convertendo em voz a recém-tomada consciência sobre uma ordem social que pouco o favorece. “Rodem, girem, rodem”, repete insistentemente, na sequência, lançando ao público um apelo sobre a importância de se mudar a ordem das coisas, de se movimentar (como Marie?), de não se acomodar em um sistema social tão injusto quanto cruel, do qual a fuga parece sempre mais possível do que a luta pela transformação.
Por vezes trazendo à cena gritos e gestos transbordantes, a montagem parece trazer o direito à voz como uma de suas reivindicações centrais. Ao explorar de modo quase permanente a tênue fronteira entre a consciência e o delírio, entre a subordinação e a proposição de novas ordens, Stereo Franz nos convoca a pensar a institucionalização de privilégios, a naturalização da desigualdade e, em momento pertinente, a eleição de corpos e vidas que valem menos do que outros – “muertos que no hacen ruído”.
(Texto escrito no âmbito da II Bienal Internacional de Teatro da USP. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Críticos para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.)