por Luciana Eastwood Romagnolli
“Amarillo”. Foto de Ed Figueiredo. |
Países latino-americanos que enfrentam situações políticas críticas foram o centro dos debates do Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, realizado pelo Sesc-SP. Depois de uma primeira edição, em 2010, focada na produção argentina, a mostra bienal neste ano homenageou o México, representado por sete espetáculos.
A violência e a imigração emergiram como temas constituintes da identidade nacional daquele país e de seu teatro. O choque sociocultural na fronteira com os Estados Unidos é uma realidade incontornável, assim como a guerra civil não-declarada que se instalou no país a partir do combate aos cartéis, sob o governo de Felipe Calderón. “O governo mexicano faz uma campanha de que não se passa nada. A sociedade está se conscientizando agora do que está acontecendo. O governo reconhece a cifra de 50 mil mortos. Não há uma semana em que não apareçam fossas clandestinas de onde saem cadáveres. O horror se torna cotidiano”, diz o diretor David Orguín.
“Creio que levaremos muito tempo para entender e explicar esse fenômeno. Há muitas teorias sobre o que está se passando. Que rompemos o norte estratégico dos poderes locais, ao que o exército responde com tolerância zero não só ao narcotráfico. Rompeu-se a ordem da corrupção operante que permitia paradoxalmente uma ordem estabelecida. Outra explicação possível é que o grande negócio está nos EUA e, no México, uma pequena parte. Isso tem a ver com tráfico de armas, lavagem de dinheiro, corrupção e exportação não só de mão de obra barata, mas também de mortos. É um quadro desolador para a consciência mexicana. Parte da população pensa: que se matem entre eles, não nos afeta, com o típico humor negro mexicano. Mas aparecem danos colaterais”, completa Orguín.
No teatro, essas feridas se convertem em obras incisivas com formas de elaboração muito distintas. “Os Assassinos”, dirigido por Orguín, cria a fábula trágica de uma família engolfada pela guerra civil servindo-se de referências do Godot de Beckett à Mãe Coragem de Brecht. Em “O Dragão Dourado”, a companhia Por Piedad Teatro opta pelo viés ficcional e cômico, apresentando o absurdo que é a rotina dos cozinheiros de um fast-food de culinária chinesa-coreana-tailandesa.
“O Dragão Dourado”. Foto de Ed Figueiredo. |
Já “Amarillo”, do Teatro Línea de Sombra , investe em tratamento documental e poético para o sofrimento de quem tenta cruzar ilegalmente a fronteira com os EUA. Foi uma das preferida do público e da crítica, tal como “Incêndios”, da Compañia Tapioca Inn.
Para Jorge Vargas, diretor de “Amarillo”, a dúvida que se impõe é: “Os criadores mexicanos têm realmente tido uma postura crítica frente à violência e à situação politica e econômica do país ou só têm feito espetacularizá-la, formulando de maneira imediata o que está na superfície e transportando para a cena sem aparato crítico?” “Essa questão me põe em um dilema ético não resolvido, sempre latente”, diz Vargas.
Ele questiona se as atuais ferramentas do teatro são adequadas para incidir nessa realidade. “As mortes causadas pelos bandos criminosos são de uma teatralização com que nenhuma ficção pode competir. A violência no México põe em crise nosso próprio sistema de representação e nossa forma de elaborar a imagem, massificada pelos meios. De tanto nomear as cabeças que caem, não vemos o que ergue todo o aparato, quem é o último beneficiário da violência, quem troca drogas por armas e armas por drogas.
A violência é só um aparato de uma máquina que transforma tudo em mercadoria”, diz Vargas.
“Os Assassinos”. Foto de Ed Figueiredo. |
Orguín observa o paradoxo de que a maioria dos dramaturgos mexicanos vive justamente na cidade mais segura do país, a Cidade do Mèxico, onde, desde os índices de sequestros caíram. “Vivemos em uma cidade murada”, diz. Ele mesmo assume ter feito parte da tradição dos que somente contavam histórias sobre o narcotráfico, mas está decidido a “não referendar o horror da espetacularidade”.
“Passou no jornal das 20h um jovem de 18 anos sendo torturado com serra elétrica. A imagem foi gravada por um celular. Essas imagens não trazem consciência de nada. São só instrumentos de propaganda que dividem o país em bons e maus. Ao abordar esses temas, precisamos de instrumentos de distância, de análise”, opina Orguín. “Em ‘Os Assassinos’, queríamos falar do sonho americano e de como somos o último efeito de uma mudança cultural e de uma fronteira tão grande como a com os EUA”.
Em estilo pós-dramático, “Amarillo” apresenta oito atores a criar imagens e partituras corporais para contar a história de um homem que saiu rumo aos EUA e não voltou. Galões de água e montes de areia ganham uma luz surreal, enquanto câmeras captam do alto a movimentação no palco e um ator escala a parede onde um vídeo projeta um trem, como se o galgasse clandestinamente. Emerge a ideia de que os imigrantes ilegais perdem a identidade e se tornam objetos – ou invisíveis, como os atores à margem na própria encenação.
Mesmo esse espetáculo, contudo, já parece “anacrônico” ao diretor. “Ainda não tinha aparecido toda a violência contra os imigrantes. O que se passa agora é mais terrível ao ponto que é inenarrável. Esse é o problema ético e estético do artista: se não o diz ou se o diz – como um pornô-miséria em que o artista se apropria do que precisa. O que dizemos está tão repetido que se torna irrelevante, mas segue acontecendo e não podemos parar de tratar só porque está esgotado. Sob quais miradas devemos fazê-lo? Para mim, está claro que os edifícios teatrais e as estruturas narrativas são insuficientes. Penso que esse momento pede outras formulações e linguagens”.
Para ele, as possibilidades de ação do artista de teatro estão fora das paredes do edifício teatral, na relação direta com a comunidade. “Quem sabe assim se proponha outras formulações de vida no interior de sociedades onde a vida social está em agonia”. Porém, continua em circulação com “Amarillo” e sua beleza plástica e documental presa às quatro paredes do teatro, que tem impactado plateias.
Espetáculos apresentados no Mirada – Festival Ibero-Americano de Teatro de Santos, em setembro de 2012.