:: Por Soraya Belusi ::
“O exercício nós resolvamos fazer com tudo, ne? Exercício….”. Esta fala pertence ao diretor Marco Antonio Rodrigues, ao referir-se sobre o espetáculo Histórias do Sr. Ninguém, projeto que nasceu sob sua orientação em sala de aula do Teatro-Escola Célia Helena. Fiz questão de reproduzir tal afirmação, por considerar que ela sintetiza o valor pedagógico e o apuro estético contidos no trabalho apresentado na edição 2014 do Festival Estudantil de Teatro (Feto).
A montagem guarda sua origem e seu valor como exercício – que pode ser notada, por exemplo, pela simplicidade nas soluções cênicas e nos acabamentos dos materiais ou pela justaposição às vezes até superficial de uma série de procedimentos e de referências distintas sobre filosofia, arte e comportamento orientais sem realizar um aprofundamento de fato em uma determinada técnica –, mas também se realiza efetivamente como obra artística à medida que não só se baseia como se apropria do texto de Brecht e de seu Sr. Keuner para construir um jogo cênico que se alimenta também das premissas teatrais do artista alemão – sem com isso constituir-se como uma “montagem brechtiana” ou, pior ainda, um tratado frio e metodológico sobre seus procedimentos cênicos e dramatúrgicos.
Após cerca de um ano morando na Suíça – para onde havia se mudado em novembro de 1947, após escapar dos Estados Unidos –, Brecht partiu para Berlim oriental, onde passaria seus últimos anos. Para trás, havia deixado, em meio a um vasto material, uma pasta com 58 textos relacionados à personagem do sr. Keuner, que se somaram a outros 87 já conhecidos. Escritos ao longo de trinta anos, esses textos podem ter duas páginas ou uma só linha, e trazem em comum esse misto de filósofo e professor – considerado por muitos uma espécie de alter ego do autor. São esses “pensamentos” que são transformados pelo espetáculo em uma espécie de haicais teatrais, cuja poética é marcada pelo humor e pela dialética, elementos considerados por Brecht como fundamentais para levar à reflexão do espectador. No caso desses textos especificamente, por sua capacidade de síntese e por seu caráter de enigma, geram verdadeiros micros curtos-circuitos na lógica linear dos hábitos mentais.
A operação de renomear sr. Keuner de ninguém borra qualquer resquício de identidade, permitindo com que ele represente todo mundo e qualquer um. Esse apagamento dos rastros de uma possível representação de personagem também é reforçado pela caracterização (figurino, maquiagem, posturas corporais e estados físicos) e pelo procedimento de coletivização da narração e da “interpretação” do protagonista dessas micro-fábulas-filosóficas.
A inspiração cênica de Histórias do Sr. Ninguém se dá no teatro oriental, que serviu como fonte de pesquisa para a construção do próprio pensamento brechtiano, no qual se incluem procedimentos que visam à evidenciação do artifício e do caráter de jogo teatral, de rompimento com a representação, do distanciamento no trabalho do ator, o rompimento da “quarta parede”, etc. Essas referências são explícitas no espetáculo e, mais do que exemplificar os princípios teatrais de Brecht, elas se transformam no alimento do próprio jogo. A inspiração oriental – e o jogo a ser realizado com ela – se apresenta ao espectador já no prólogo do espetáculo, em que o palco é tomado por figuras de faces e corpos brancos – assim como no teatrão tradicional japonês e no butoh; e remete também a algumas formas de mímica corporal – e se comunicam em uma língua irreconhecível, porém de fortes traços orientais – certo acento japonês, que bem poderia ser chinês! – assim como suas posturas corporais ou o ato de retirar os sapatos. À medida que as cenas se desenvolvem, percebemos palavras em indiano, em japonês, em chinês, ampliando essa noção de oriental e embaralhando as referências.
A trilha sonora também atua no sentido de inserir múltiplas referências sonoras que nos remetem a distintos países do que entendemos como Oriente; assim como também acontece com o uso do figurino ao longo da apresentação. Outro elemento que dialoga com essa inspiração é a própria androginia na construção corporal dos atores, em que estados físicos de flutuantes entre as noções de feminino e masculino ampliam ainda mais as leituras acerca desse sr. Ninguém que pode ser todo mundo.
O oriental de Brecht – as técnicas tradicionais – não é a única noção de oriental com que trabalham os criadores de Histórias do Sr. Ninguém . O que afirmo com isso é que as referências trazidas para a cena do espetáculo vão desde as manifestações cênicas tradicionais até os clichês que o mundo ocidental construiu sobre o outro lado mundo do mundo, assim como os produtos culturais típicos de nosso tempo – dos clipes e coreografias do cinema de Bollywood até os desenhos animados japoneses e suas canções.
Histórias do sr. Ninguém, além de todo o estofo conceitual que possui e da grande comunicabilidade que alcança com o público, parece ter sido feito visando à construção e ampliação do repertório dos alunos-atores, que conseguem lidar efetivamente com uma série de referências teatrais, em uma criação que, sem diminuir ou hierarquizar nenhum elemento construtivo da cena, culmina com o foco da luz sobre os atores e sobre os espectadores.