por Luciana Romagnolli
“A Noite Devora Seus Filhos”, montagem da companhia mineira Paisagens Poéticas para um texto de Daniel Veronese, coloca outra vez em questão a possibilidade de construção de uma representação para o trágico, para o trauma. Este é um problema que tem inquietado muitos realizadores no teatro recente. A principal referência é “Villa” (leia a crítica), de Guillermo Calderón.
Aquele espetáculo, apresentado no FIT-BH 2012, discute diretamente a ética relativa à reprodução do horror da ditadura chilena, num embate entre a necessidade de perpetuar o ocorrido para evitar seu esquecimento (e sua repetição) e a recusa ao sensacionalismo, consciente dos limites da imagem e da palavra para recriarem uma experiência passada. Em outra medida, “Sinfonia Sonho” (leia a crítica), do carioca Teatro Inominável, também aborda cautelosamente um evento trágico, descrente das possibilidades de reconstituição e de compreensão do horror.
Na montagem mineira, a experiência traumática sofrida por uma garotinha é comunicada ao espectador através de (no mínimo) uma dupla mediação, lançando a atenção — como nos casos dos espetáculos acima citados — sobre estratégias de abordagem do horror. Nada mais coerente como reação ao sensacionalismo crescente com que esses casos têm sido tratados em meios de comunicação e artísticos, que carregam um prazer sádico pela catarse, pelo sentimentalismo e pelos detalhes escabrosos. Que sirva de exemplo recente a reprodução de vídeos gravados pelas vítimas do incêndio em Santa Maria.
“A Noite Devora seus Filhos”. Fotos de Guto Muniz. |
Fora do campo da reencenação da tragédia, “A Noite Devora Seus Filhos” elege como principal operação a narrativa. É por meio da fala, na construção tateante de discursos incompletos e desencontrados, que as memórias do trauma vão se estruturando e revelando o acontecimento vivido. O risco assumido da verborragia praticada é que as palavras se percam no espaço entre palco e plateia, de modo que já não se acompanhe seus sentidos e partes do quebra-cabeças fiquem para trás. Embora isso tenda a ocorrer em momentos do espetáculo, o modo como a personagem se apresenta sugere que as palavras são mais importantes para ela mesma do que para o espectador. A este, cabe mais testemunhar a maneira como elas servem à construção de uma narrativa própria para aquela vida, com a qual organize sua identidade diante da memória das experiências passadas.
Essa questão da identidade sustentada ao longo do tempo de uma existência se evidencia na duplicação da personagem em duas atrizes de idades distintas, confinadas num mesmo espaço onde suas palavras se sobrepõem, coincidem e se completam. Como escrevi quando a obra ainda se tratava de uma cena curta, daí se intui que aqueles abalos do passado não a abandonam em nenhuma etapa da vida, são sempre um filtro em sua relação com as pessoas e coisas ao redor; e noções como futuro e passado perdem a sua clareza. De alguma maneira, aquela mulher ficou presa ao evento da infância, como sugerem as grades do cenário.
Quanto à possibilidade de comunicação do trauma ao espectador, este é reconhecidamente “inenarrável”. Nem por isso, deixa de ser dito. Em meio a um cenário que se desconstrói e apresenta uma sucessão de ruídos e quebras, no intuito de chamar o espectador à racionalidade, as atrizes progressivamente abandonam a fala distanciada e o gestual comedido para concentrarem em uma cena a libertação da energia represada, num discurso catártico: um lampejo, fugidio, de acesso ao horror experienciado.
Sobre essa elaboração narrativa da personagem, contudo, o grupo dispõe mais uma camada mediadora: dedica-se à desconstrução da cena, sabotando a possibilidade de o espectador aderir completamente à narrativa. Para tanto, usa os tais ruídos e quebras, que operam sobre o tempo e sobre a lógica (a entrada anacrônica de um celular; a Fanta servida como chá; etc). Mais do que isso, escancara o processo de construção do espetáculo trazendo à vista das atrizes e do público os agentes de luz e de som. Nesse sentido, radicaliza em relação à cena curta, permitindo que eles extrapolem suas funções e surjam em cena também como atores, reafirmando, assim, o caráter artificial e de construto do que é apresentado.
É interessante ainda notar a diferença de estrutura desse para outros textos do dramaturgo argentino que têm sido montados no país – sobretudo “O Líquido Tátil”, pelo Espanca!, e “Circo Negro”, pela CiaSenhas (PR). Enquanto este se organiza como um texto-manifesto resistente à realização cênica e provocativo em relação à condição do ator; e o outro aponta para as pulsões recalcadas num núcleo familiar dentro de uma história linear em forma de drama corrompido pelo absurdo; “A Noite”… absorve aspectos da estruturação da memória, nessa forma narrativa livre da linearidade, e coloca a intimidade familiar em conflito com uma problemática social.
*Espetáculo visto no Verão Arte Contemporâneo, em Belo Horizonte, em janeiro/2013.