— por Luciana Romagnolli —
Crítica de “O Segundo Inverno”, de Ana Luiza Fortes.
Henrique – Será que ele tem saudade?
Beatriz – Deve ter, Kike. (silêncio). Mas olha.
Henrique- O quê?
Beatriz – É que às vezes ele esquecia até dele.
Henrique – Talvez ele tenha saudades dele mesmo então.
Beatriz– Pode ser. Faz sentido.
Ana Luiza Fortes escreve “O segundo inverno” como quem dá a ver relances íntimos da relação entre mãe e filho. O seu imaginário toma a forma que nos habituamos a ver no cinema, uma sucessão linear de cenas delimitadas por cortes que avançam no tempo e no espaço. Mas esta precisão está a serviço de tempos dilatados e de uma narrativa rarefeita; e as cenas, desenlaçadas, suspensas sobre esse fio cronológico. Estática, como a água parada nas depressões onde ela se acumula, a estrutura não acompanha o movimento da vida: destaca momentos. Tudo se sustenta nos diálogos, cuja coloquialidade amacia as questões de vida e morte infiltradas naquela relação, a todo o tempo vazando para fora do nosso campo de visão. Ao leitor ou espectador cabe a posição de voyeur de pedaços de uma história, a testemunhar cenas para cuja compreensão não tem todas as peças. E intuir do que falam os personagens mais do que saber realmente, porque captura pela metade uma conversa e a perde antes do fim. Henrique diz: “Mãe”. Ela responde: “Fala”. Corte. Não ouvimos.
A escrita percorre esse território da sugestão, onde não somente se dispensam as explicações, mas mesmo as frases mais banais permitem leituras abertas, especialmente acerca da qualidade da relação entre filho e mãe. O mesmo diálogo pode ser lido como desentendimento ou como aquele tipo de intimidade que permite brincadeiras e arestas. São sutilezas que afetam os sentidos produzidos. Pela fala da autora após a leitura cênica, ela via entre os dois uma tensão arisca. Nas vozes das atrizes, contudo, essa interação ganhou uma qualidade afetiva em que a dissonância se acomoda na cumplicidade entre elas.
Outro deslocamento que age sobre a produção de sentidos é a mudança de gênero: no papel, um filho, na leitura cênica, uma atriz a representar a filha. Como é inescapável no atravessar da folha para o palco, sentidos previamente inesperados colam-se às palavras e expandem seu universo de ressonância, tornando difícil (e, creio, desnecessário) diferenciar o que estava só na cena e o que estava só no texto.
Eis então como se arma o esqueleto ao qual nós, espectadores, tentaremos reconstituir como ser vivo. O mesmo que falta à filha para poder enterrar a dúvida sobre o destino do pai. Estamos na posição da criança (ou pré-adolescente, tanto faz, importa é ser a idade em que o mundo adulto ainda é interdito, entrevisto por frestas). Uma distância é deliberadamente imposta pela mãe: entre o que ela sabe e o que ela diz – à filha e a nós. Não que tenhamos acesso a tudo o que a filha sabe, mas esta é outra distância imposta pela autora ao recortar as cenas, pois que a filha aparenta nada esconder.
Por que falo dessas distâncias? Porque o ponto no qual percebo que “O segundo inverno” escapa de repetir um tema conhecido dentro de um esquema antecipável é justamente no lapso geracional, no quanto as lacunas entre as cenas apontam para a lacuna entre a mãe e a filha, entre o adulto e a criança. A mãe surge como uma figura mediadora entre a criança e o mundo ou a criança e a verdade. Dela, Kika/Kike repete palavras e frases inteiras, como a informação de que a polícia não priorizará a procura do pai, pois ele “não é uma criança, nem um retardado”. Está exposto aqui o poder da mãe sobre a formação do/a filho/a – não um poder deliberado, mas além das vontades dela. Tudo o que fizer e disser, tudo o que não fizer e não disser, impactará sobre o desenvolvimento daquela outra pessoa de modos impossíveis de se antecipar. Kike/Kika intui essa influência quando cogita para si mesma: “se eu não tiver pai, eu vou continuar sendo eu?” O que (não) se é por (não) se ter mãe, aquela mãe, e pai, aquele pai?
A face mais evidente do vazio entre as gerações manifesta-se na ausência do pai, que, embora concreta, reflete metaforicamente sobre a história; assim como o gosto da criança por ser enterrada na areia faz-se sombra da falta de um enterro para o pai. Também por uma artimanha de linguagem, o termo capacitista “retardado” ao ser emparelhado com a palavra criança (as duas condições de prioridade às quais o pai não atende) promove uma extensão dos sentidos do primeiro para a segunda. Essa imagem da criança como ser incapaz de apreender o mundo transparece no regime de comunicação determinado pela mãe, que priva a/o filha/o da verdade sobre o paradeiro do pai, por mais que esta criança demonstre uma sensibilidade poética para o que se passa ao seu redor. É Kike/Kika quem cogita um resposta poético-existencial : “Talvez ele tenha saudades dele mesmo então”.
É nesse campo do sensível, daquilo que se infiltra nas relações familiares, da distância entre o adulto e a criança e do que afeta essa criança em formação, que vejo potência em “O segundo inverno” para sobrepujar os contornos conhecidos de cenas familiares recortadas e instaurar uma zona afetiva onde o espectador possa deitar olhos despreparados sobre relances íntimos da maternidade e da infância.
*Leitura cênica realizada em 15 de setembro de 2015, no IV Janela de Dramaturgia, em BH.