– por Julia Guimarães –
Reconhecida por abrigar uma cena bastante expressiva do teatro e da dança das últimas décadas, a Bélgica possui também um dos mais importantes festivais de artes cênicas da atualidade, o Kunsenfestivaldesarts, em Bruxelas. Atualmente dirigido por Christophe Slagmuylder, o KFDA é conhecido por catalisar e valorizar renovações de linguagem na área, seja ao (co)produzir boa parte dos espetáculos que integram sua programação, seja ao mesclar em sua curadoria nomes consagrados da cena contemporânea com criadores pouco conhecidos do público. É esse tipo de estrutura que aparece em sua 20ª edição (8 a 30 de maio), que reúne tanto artistas de peso das artes performativas atuais – como Romeo Castellucci, Jan Lauwers e The Wooster Group – quanto nomes emergentes – caso da portuguesa Marlene Monteiro Freitas ou do sueco Marten Spangberg.
Entre os expoentes do primeiro grupo, está o criador francês Jérôme Bel, que estreou no festival seu novo espetáculo, “Gala”, na noite da última sexta (8). A exemplo da estrutura construída em obras anteriores, como “Disabled Theater” (que passou por São Paulo e Belo Horizonte em 2014), a nova montagem do diretor também explora uma dança feita por corpos não necessariamente treinados para dialogar com essa linguagem, na qual a fragilidade técnica e o erro surgem como modos de potencializar o caráter democrático da dança. No palco de “Gala”, 18 pessoas das mais variadas idades, tamanhos, pesos e etnias constroem uma estética na qual alteridade e coletividade surgem entrelaçadas.
Logo na primeira cena, uma tela de vídeo projeta fotos, em sua maioria extraídas do Google, de teatros espalhados pelo mundo. Vemos desde um minúsculo palco improvisado na praça de alimentação de um shopping até os pomposos teatros elisabetanos europeus, passando por espaços rústicos em que as cadeiras são substituídas, por exemplo, por troncos de madeira.
Nessas imagens, o poder da convenção-teatro se faz presente. A força de uma arquitetura criada para mirar e ser mirado diz respeito aos mecanismos mais básicos de instauração da teatralidade; neste caso, ela é produzida pela tradição de uma disposição espacial que configurou, no decorrer dos séculos, um imaginário em torno da linguagem cênica.
Nesse mecanismo inicial explorado pelo espetáculo, as escolhas de Jérôme Bel já deixam entrever dois elementos que colaboram para produzir uma espécie de distanciamento entre palco e plateia nos seus trabalhos: a excessiva repetição de uma mesma ação (nesse caso, mostrar imagens de teatros) e a ideia de explorar a diversidade a partir de uma unidade.
É um mecanismo semelhante que aparece nas cenas seguintes. A partir de palavras escritas em um bloco de notas disposto na parte da frente do palco, onde se lê uma sucessão de estilos ou referências de dança (balé, valsa, “Michael Jackson”…), um a um, os participantes executam algum movimento emblemático daquele estilo (o Grand Jeté, por exemplo). Já na segunda parte do trabalho, alguns dos bailarinos realizam coreografias criadas por eles próprios (entre esses, uma criança e uma cadeirante) enquanto os outros tentam copiar os passos.
A simplicidade da estrutura convida ao deslizamento do olhar: uma vez que os movimentos em si são universalmente conhecidos, o foco então recai para a maneira encontrada por cada corpo de realizar a ação. E em “Gala”, há tanto bailarinos amadores quanto profissionais. Assim como em “Disabled Theater”, a escolha por valorizar momentos individuais parece chamar atenção para a singularidades de corpos que, no cotidiano, muitas vezes passam despercebidos.
Se, por um lado, o trabalho corre o risco de se tornar uma versão cênica do tão questionado multiculturalismo – acusado de reduzir diversidades étnicas e culturais a uma espécie de slogan publicitário de “tolerância fake”, a exemplo das famosas e criticadas propagandas da marca de roupa United Colours of Benetton -, por outro, funciona, tal qual em outros trabalhos do diretor, como resistência ao caráter virtuoso e espetacular que tradicionalmente esteve atrelado às artes da cena.
Nesse sentido, “Gala” poderia ser visto também em diálogo com toda uma linhagem que busca entrelaçar arte e vida, seja como modo de valorizar um cotidiano antiespetacular no palco – e assim, revalorizar hierarquias sobre o que merece ou não ser visto pelo público – como também uma declaração de amor à dança na sua dimensão mais democrática possível.
Não por acaso, canções do universo pop já desgastadas pelo apelo excessivo da indústria cultural ganham novos significados quando coreografadas pelos participantes de “Gala”: estabelecem uma linha de continuidade da dança pensada como arte e pensada como atividade da vida social e cultural, entre elas as tradicionais “festas de gala” – formaturas, casamentos, cerimônias de debutantes – nas quais a dança torna-se muitas vezes o principal elo entre os convidados.
E é nesse contexto também que as imagens de teatros exibidas no início do espetáculo evidenciam a potência da caixa preta para ressignificar dimensões a princípio banais da vida ordinária, a partir do gesto de deslocamento de ações que em si não possuem valor artístico (a exemplo do urinol de Duchamp), mas que, quando transpostas para o interior de uma caixa cênica, imediatamente adquirem teatralidade e, por consequência, novas leituras.
Ao mesmo tempo, os mecanismos encontrados por Jérôme Bel em suas recentes encenações – participações de amadores que repetem uma mesma ação/instrução cada qual à sua maneira – ajudam a criar certa distância do espectador sobre o que vê, necessária para a reflexão sobre o que atrai nosso olhar na cena. Seria a dimensão grotesca das singularidades – fator que muitas vezes faz de Jérôme Bel um artista controverso – ou a valorização de corpos que historicamente estiveram alijados dos palcos, entre várias outras possibilidades?
Independente da resposta – pois se trata de uma reflexão transferida a cada espectador – a estrutura criada pelo diretor francês permite que empatia e distanciamento convivam simultaneamente como possibilidades de fruição da obra, o que talvez seja um dos grandes méritos de uma estrutura cênica, a princípio, tão simples.
Em conversa após o espetáculo na apresentação do dia 9 de maio, Jérôme Bel afirmou a importância do público, em seus trabalhos, ter consciência de seu próprio olhar. “Você precisa saber o que está olhando e porque é tão confortável”, disse. E é nessa tensão que seu trabalho segue provocando o espectador a se perguntar como lida – no teatro e no cotidiano – com desafios da alteridade em seu mais diferentes âmbitos.