por Luciana Romagnolli
Assis Benevenuto lê “Get Out” e Marina Viana, Marina Arthuzzi e Mariana Blanco leem “Silvia e os Outsiders” no segundo encontro da Janela de Dramaturgia. Foto de Filipe Costa Silva. |
Uma urgência atravessa as dramaturgias de Marina Viana e Assis Benevenuto. Não a do ritmo acelerado, embora este seja caro a Marina. Urgem em dizer, em encontrar um lugar de enunciação que se pareça com um lugar no mundo. Dizer, afinal, é um ato performativo, uma ação sobre esse mundo. A urgência, portanto, parece ser a de como atuar em um mundo sobre o qual não se tem nenhum domínio, quando recusar o automatismo e a passividade são atitudes essenciais à sobrevivência.
Nessas dramaturgias, os personagens se diluem a não mais que películas com as quais se enfrentam situações forjadas. Sob eles, vibra a voz subjetiva de uma tentativa de autoria, num embate com a formação discursiva (articulação de discurso e ideologia) em que estão imersos, seus clichês e chavões, seus limites e imposturas.
A forma é do teatro, da fala-ação, mas a vontade é da música, do eu-lírico que expressa mais do que sentidos pela linguagem energética dos sons. É uma geração que não repete modelos simplesmente, mas busca o que a move e encontra razões e devires no teatro e em suas ferramentas – manuseadas com a liberdade dos deslimites. Faz uma dramaturgia dispersiva, em que o impulso de origem e o movimento que dele decorre importam mais do que chegar a algum lugar.
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Em “Silvia e os Outsiders”, Marina Viana retoma seu teatro-manifesto pela figura imprecisa de Silvia, portadora do sentimento de ser intrusa no mundo, buscando a autoafirmação entre coisas que não lhe dizem respeito e as que a formaram, ainda que involuntariamente. Como em outros textos seus, Marina transborda o caldeirão cultural em que sua geração cozinha, num movimento de identificação e estranhamento antropofágico-pop. Silvia alude às escritoras transtornadas que alargaram as possibilidades do ser-mulher. É Sylvia Von Harden, a poeta e jornalista alemã retratada por Otto Dix em cuja figura andrógina se espelha a aparência da autora-atriz. E é outras. Expressa-se entortando a lógica em perguntas e respostas fugidias que evocam as entrevistas feitas por e com Clarice Lispector, ora metafísicas ora inacreditavelmente prosaicas.
Uma menção à dublagem passa quase despercebida na descarga verborrágica que se instaura na leitura. Contudo, é significativa do processo dramatúrgico – e social – em que o discurso não é produzido originalmente por quem o diz. Ele se repete retirado de outro contexto e, nesse processo de apropriação, é ressignificado, embaralhando a noção de autoria e originalidade. O que Silvia-Marina tem em comum com Capitu, com o cerrado? Tatear essas relações é um modo de se inventar e se posicionar no tal caldeirão, mas os sentidos não se fixam, são instáveis e urgentes. A dispersão é um valor numa dramaturgia de links, cuja autoria e originalidade, se for interessante procurá-las, encontra-se na sua capacidade associativa, que revira o já-conhecido propondo-lhe outras perspectivas e convida a re-conhecer os clichês e chavões.
O deboche surge como uma atitude crítica de quem levanta bandeira sem a ingenuidade das ideologias fracassadas. A orgia partidária se metaforiza em uma sucessão de bebidas – o café, o leite, a coca-cola, a vodka – que descamba para o coquetel, o tudo-vale. Faz-se, assim, uma releitura politizada e crítica do mundo por um discurso imagético, com o teor de depreciação de quem não se leva a sério demais; uma releitura da cultura pop na qual se está inserido e uma reinvenção do feminino e de suas posturas possíveis, numa ambição de “pseudo-mártir das causas modernas perdidas e que agora só quer um resto de glamour, chegar ao recinto com alguma dignidade”.
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Se as duas Marinas, Viana e Arthuzzi, e Mariana Blanco fazem teatro como quem faz rock, com a postura desafiadora e um furioso despejar de ideias, sobrecarregado até a distorção, é também como música que Assis Benevenuto molda “Get Out”: título e refrão de sua peça. A melodia dele pode ser menos agressiva, mas comporta não menor potencial de combate. Contra o quê? O imperativo anglófono repetido à exaustão concentra uma multiplicidade de interpretações, com as quais o texto joga. Ele impulsiona para o movimento, ainda que indesejado; para o abandono de velhas ideias e comportamentos empacados no automatismo, nos lugares-comuns que de tão repisados já não apresentam relevo, clamando por tomadas de posição. Ao mesmo tempo, comporta uma questão existencial, a da impotência diante da hora da morte. De viés, nos implícitos, Assis nos indaga: Como viver se vamos morrer? Ou ainda: Isso que constitui a massa da vida, o que diz sobre a vida em si e sua essência efêmera? O teatro se reafirma como arte mais próxima da vida, em seu caráter transitório, passageiro e precário. E é tamanha a força desse teatro que sabe de suas idiossincrasias e justamente as sublinha.
Ter uma questão realmente mobilizadora para o criador garante, no mínimo, uma obra que não se acomoda nos moldes consagrados, mas busca suas próprias vias de expressão. Como dizer torna-se, então, parte do que se diz. E a dramaturgia de “Get Out” tateia formas. A certeza está na abordagem interpelativa do público, tomando consciência da presença compartilhada e reafirmando-a, para que se estabeleça o convívio, próprio das artes do teatro e da música. Em sua fala, Assis alterna momentos de evasão metafísica e abstrações, que tentam dar sentido ao informe, a observações tangíveis do cotidiano. E recorre a alguns ambientes cuja dinâmica materializa suas inquietações: o aeroporto serve ao medo da morte, assim como o set de cinema, à crise da representação. Desponta a batida do dedo indicador na têmpora enquanto fala do “sentir”. Sentimento e pensamento se friccionam nessa imagem-gesto, ecoando a confusão entre o sentir e o pensar, o abstrato e o palpável, o eu lírico e o épico.
Assis coopta espectadores para criar referências materiais para os personagens em torno de seu eu-diretor no set de filmagem criado pelas palavras – e aí é possível sentir um pouco dos limites da teatralidade numa leitura cênica, em que a atenção flutua difusa pelas histórias cruzadas, até que o texto imponha uma legenda ao previamente narrado. O bastidor do cinema funciona artificialmente como uma analogia para que o autor-enunciador prove seu ponto.
Como em “Outro Lado”, há múltiplas elaborações em torno das mesmas peças, trespassadas por mínimos comuns: a eventualidade da morte e sua inescapabilidade; a vida restrita ao aqui e agora de cada indivíduo, que se cruzam na apresentação teatral; a composição metalinguística que procura a representação por trás da representação, a mentira por trás da mentira, a imagem por trás da imagem. No extremo, toma a forma de um epílogo que se anuncia fora do jogo de representação, mas parece tão ficcional quanto tudo o que se disse e fez até então. Essa indistinção é sintomática da instabilidade do real sobre a qual a vida se sustenta.
*Texto originalmente publicado no blog Janela de Dramaturgia, em 1º de novembro de 2012.