::: Por Soraya Belusi :::
Ao relacionar os pontos axiológicos para a análise crítica, o pesquisador argentino Jorge Dubatti enfatiza entre as questões a serem abordadas a proposição ideológica que carrega o espetáculo. Segundo ele, este é o único dos recortes no qual o crítico pode se posicionar, clara e subjetivamente, contra ou a favor do pensamento impregnado na obra. É evidente, e notável, em “A Onça e o Bode de Guarda-Chuva, Guarda-Sol e Sombrinha”, a intenção de propagar entre os espectadores o prazer e a importância da leitura, assim como refletir sobre valores como a diferença, o convívio, a colaboração e a amizade. Mas, nesse intuito louvável, acaba tropeçando num excesso de didatismo e ilustração, que pode interferir no seu poder de convencimento junto ao público infantil.
O espetáculo parte da fábula conhecida no folclore brasileiro na qual uma onça e um bode, sem terem conhecimento, acabam construindo juntos uma moradia na floresta e se veem obrigados a conviver no mesmo espaço. Porém, o texto de Aristides Junho para o espetáculo, em que também assina a direção, cria uma outra camada na dramaturgia ao apresentar três outros personagens – Guarda-Chuva, Guarda-Sol e Sombrinha – que não conseguem se entender na hora das brincadeiras e que, assim como na fábula, aprendem a colaborar entre si.
Este outro plano da dramaturgia agrega conflitos entre os personagens que são espelhados dos dilemas que os animais vivem na fábula. Ou seja, os dois planos da dramaturgia – a fábula da Onça e o Bode e a relação entre os três personagens – sublinham as mesmas coisas. Tal procedimento, ao mesmo tempo que tem a força de problematizar as questões que estão no conto popular, acaba materializando a “mensagem final” que a própria fábula já carrega, correndo o risco de, em alguns momentos, soar redundante.
Voltando ao ponto “ideológico”, por vezes é incômodo a construção dos personagens e a relação que estabelecem entre si – no entanto, na cena final, esse sentimento é amenizado pela fala dos personagens. Porém, alguns pequenos detalhes passam despercebidos e, sem querer ser a “patrulha do politicamente correto”, carregam mensagens que reforçam o estereótipo – por exemplo, na cena em que é inaceitável ser chamado de palito de algodão doce, mas ouve-se cabelo de Bombril sem maiores incômodos.
“A Onça e o Bonde de Guarda-Chuva, Guarda-Sol e Sombrinha”, da Teatraria Espalha Fato, é não apenas um espetáculo feito para crianças, mas também feito por crianças. Talvez “semi-adolescentes”, me corrigiria o jovem elenco. O que se vê é um trabalho em que notavelmente há dedicação e seriedade, algo que merece ser louvado na relação artística com jovens criadores. Há uma certa ousadia na construção dos personagens, não só pela caracterização dos figurinos e maquiagem – que misturam referências de futebol, boneca de pano e pierrôs –, mas pela artificialidade nos gestos e no ritmo da fala dos atores. Isso, porém, pode ser ainda mais aprofundado pelos atores, criando maior domínio dos seus recursos vocais e corporais – as ferramentas para isso só se conquistam mesmo com tempo e trabalho, comprometimento que Juliana Evangelista, Wellington Evangelista e Eteylson Yuri já demonstram ter.
A encenação de Aristides Junho é cuidadosa e inventiva, preenchendo o espaço de cores, texturas e materiais, utilizando os três elementos que dão nome aos personagens – guarda-chuva, guarda-sol e sombrinha – como suporte para toda a criação do cenário. A proposta funciona esteticamente muito bem e ainda apoia a passagem de espaços e tempos dentro do espetáculo. Somente a manipulação desses objetos é que precisa ser ainda mais apropriada pelos atores, principalmente nos momentos que são usados como bichos. Mas isso em nada compromete a beleza visual e o cuidado no acabamento que a direção consegue alcançar.