Por Guilherme Diniz
*** O Horizonte da Cena faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, ao lado das seguintes casas : Ruína Acesa; Guia OFF; Farofa Crítica; Cena Aberta; Agora Crítica; Tudo, menos uma crítica e Satisfeita, Yolanda?
Crítica do espetáculo Os Bruzundangas, dirigido por Renato Carrera e Dani Ornellas, visto no Centro Cultural Banco do Brasil de Belo Horizonte, no dia 17 de agosto de 2024
A República dos Estados Unidos da Bruzundanga é o distorcido e amargo espelho que Lima Barreto (1881 – 1922) pôs diante do Brasil. No país fictício, forjado pela pena combativa do escritor, a corrupção, a mediocridade e a espúria sede de poder são as principais engrenagens de uma sociedade profundamente desigual, perdida entre vícios e vaidades, assolada pela incompetência sistêmica. Para os seletos amigos do Presidente da República (leia-se Mandachuva, segundo o vocabulário barretiano) lá é a saborosa Pasárgada, onde tudo é permitido, onde os privilégios e as benesses caem como maná do céu, onde a lei é um mero detalhe que pode ser torcido e retorcido em benefício próprio. Para os demais, resta o Vale de Lágrimas, isto é, os impostos galopantes, a truculência policial e toda sorte de exploração (física, moral, econômica, psicológica etc). A decadência institucional e ética da Bruzundanga se assemelha muitíssimo à deprimente situação daquela cidadezinha russa dramatizada por Nikolai Gogol (1809 – 1852) em O Inspetor Geral (os maus exemplos não são, afinal, exclusividades de ninguém). Nos dois casos, os serviços públicos não funcionam, pululam os escândalos administrativos e a penúria do povo sustenta as faustosas regalias do andar de cima. Em Barreto, assim como em Gogol, é o riso satírico a arma empunhada para atacar a letargia do status quo, furar consensos paralisantes, dessacralizar as autoridades e achincalhar a sordidez de um modelo social incapaz de oferecer vida plena a todos e todas.
Os Bruzundangas (1922), obra póstuma de Lima Barreto, apresenta uma visão fortemente desencantada, embora não fatalista, a respeito da nascente república brasileira, cuja relação com seu recente passado escravocrata, para dar um exemplo basilar, estava (e ainda está) muito mal resolvido, reatualizando brutais marginalizações. Nosso negro autor, descrente dos ufanismos e dos entusiasmos republicanos, viu o verso e o reverso da imagem, o positivo e o negativo do retrato risonho de um novo Brasil, de uma nova cidadania. Além do clientelismo, das violentas repressões e da risível podridão dos altos escalões, a jovem república, com suas instituições médicas, jurídicas e educacionais, abraçara firmemente as ideologias do darwinismo social e da eugenia, intensificando os mecanismos de discriminação racial. O Brasil do futuro, segundo as elites políticas, financeiras e intelectuais, deveria ser branco. Lima compreendeu, na pele do corpo e na pele do texto, que as republicanas promessas de igualdade estavam longe de ser uma realidade concreta. Ora, a modernização urbana e econômica do país viria às custas de muito sangue. Nesse sentido, em Os Bruzundangas o escritor não personaliza sua crítica, nem tampouco se converte em um simples moralista. A sua visão é mais ampla, denunciando as tensões e as contradições de um intrincado processo histórico de transição do mundo monárquico para o mundo republicano. Em suma, Lima Barreto explicita, de maneira lúcida, cômica e ferina, que a República, já na sua aurora, não estava a oferecer um projeto de futuro para a imensa maioria de seu povo, ou seja, as classes trabalhadoras, as populações negras e indígenas.
Eis que agora, em 2024, este instigante escrito ganha uma inédita – salvo melhor juízo – versão teatral, dirigida por Dani Ornellas e Renato Carrera. A montagem, cujo título é o mesmo do livro, parece-me, a princípio, significativa pelo diálogo travado com uma obra que escava as tensões de nossa formação republicana, ressaltando o sarcasmo perspicaz e o requinte poético de um autor atropelado por uma canônica e conservadora historiografia literária. Esta encenação surge em um contexto no qual vemos, no palco brasileiro, belas manifestações do universo barretiano. Traga-me a cabeça de Lima Barreto (2017), solo de Hilton Cobra, da Cia dos Comuns (RJ) e A Solidão do Feio (2024), solo de Sidney Santiago Kuanza, do grupo Os Crespos (SP), não constituem, é nítido, exemplos numerosos, mas, nos últimos anos, são contundentes experimentações ancoradas na vida e na obra do autor de Clara dos Anjos. Embora mais recuadas no tempo, é lícito mencionar Policarpo Quaresma (2010) e Lima Barreto, ao Terceiro Dia (2013), prestigiadas peças conduzidas respectivamente por Antunes Filho (1929 – 2019) e Luiz Antônio Pilar.
Contudo, o espetáculo faz uma leitura reducionista da obra. Ornellas e Carrera acentuam, quase unicamente, o tom anedótico, os lances paródicos e farsescos, modelando uma encenação dominada principalmente pelo desbunde, pela avacalhação, pela gargalhada escrachada. Tal concepção dá conta somente de uma parte da sátira de Lima Barreto. Em seu livro, a comicidade, expressa nas ácidas ironias, nas caricaturas inclementes da sociedade brasileira e no deboche mordaz, convive com passagens e atmosferas alinhavadas por um ceticismo penoso e por uma fina melancolia de quem ri da situação, mas, no íntimo, conserva um angustiante pesar diante do descalabro do próprio país. É este sentimento agridoce que está subjacente em muitos trechos, tais como: “A sociedade da Bruzundanga mata os seus talentos, não porque os desdenhe, mas porque os quer idiotamente mundanos, cheios de empregos, como enfeites de sala banal” ou “Bossuet dizia que o verdadeiro fim da política era fazer os povos felizes, o verdadeiro fim da política dos políticos da Bruzundanga é fazer os povos infelizes”.
A encenação põe, em primeiro plano, as personagens e os casos ridículos, como as idiotices de Chico Caiana, o Ministro da Agricultura, que “nada entendia de agricultura, mesmo daquela que dizia exercer”, de acordo com Lima, ou as vaidades do Dr. Karpatoso, digníssimo sabedor das ciências econômicas, adorador da moda europeia, apaixonado por elevar, como poucos, os preços dos produtos de primeira necessidade. O livro é pródigo em figuras e situações algo burlescas, mas sua verve satírica não se esgota nessa dimensão. Lima está igualmente discutindo, por meio da ironia, a grave dificuldade dos trabalhadores do campo, o poder dos latifúndios na concentração de terra, o instável papel do café nas finanças da Primeira República, o caráter dependente da economia brasileira mesmo atravessando certas modernizações no âmbito das relações capitalistas etc. Os Bruzundangas, a peça, ao contrário da criação literária, se apega primordialmente aos aspectos pitorescos e risíveis da vida política brasileira, deixando de delinear uma visão crítica mais ampla, mais profunda.
O desenho da montagem se inspira no humor musicado do teatro de revista. Tal escolha, do ponto de vista histórico, tem certa coerência. De 1880 até o final dos anos 1930, os gêneros cômicos e ligeiros (entre os quais se inclui a revista) dominaram largamente a cena do país, retratando, com farto deboche, o cotidiano urbano daquela sociedade transpassada por agudas transformações socioeconômicas, além de discutir, direta e indiretamente, noções de brasilidade e de nacionalidade no alvorecer da República. Lima Barreto viveu na fase áurea da teatralidade revisteira e registrou, em algumas de suas crônicas, o imenso deleite da plateia perante esse gênero tão popular. Porém, do ponto de vista artístico, a estética da revista não conseguiu abarcar, no espetáculo, as facetas graves e amargas do livro. A obra não está apenas zombando da atualidade, dos acontecimentos pontuais e das ridículas figuras públicas do Brasil (ou, melhor dizendo, da Bruzundanga). O autor também reflete, num plano mais profundo, sobre todo aquele processo histórico, apresentando constatações, digamos, tragicômicas a respeito da barbárie inscrita na modernização das cidades, na marginalização geográfica das populações negras e pobres, na risível e colonizada mania de copiar o mundo europeu, etc. A ambiência predominantemente burlesca da peça não raro descamba para as gracinhas de duplo sentido sexual ou escatológico. Vasos sanitários estilizados e rolos de papel higiênico invadem o palco, ambos a sugerir a degeneração da pátria, a sua ruína, a sua fetidez. Os diretores visam o efeito imediato e espetacular, característica cara ao teatro de revista, mas estes recursos não ampliam, no diálogo com a literatura barretiana, qualquer questionamento acerca de nossa formação republicana, como desponta na criação de Lima. Ao contrário, eles colocam, em relevo, tão somente o escárnio grosseiro.
Em cena, Dani Ornellas, Hugo Germano, Jean Marcel Gatti e Renato Carrera se desdobram entre cantorias, coreografias e a criação de esquetes a partir dos capítulos do livro. Há indiscutível vigor em suas atuações, vividez no entrosamento, quentura e malícia na composição dos quadros. O problema é que o elenco constantemente tende ao exagero, sobrecarregando as caricaturas, não permitindo ao texto manifestar a sua própria graça. Toda frase é acompanhada de uma piscadela safada, todo dito espirituoso é ladeado por uma careta maledicente, o mais sutil jogo de palavras é proferido com tintas bufonescas. As intenções cômicas são demasiadamente escancaradas, de tal modo que os subtons e as sutilezas da ironia barretiana desaparecem. A narrativa literária não respira, porque sempre abafada pela infindável parafernalha cômica do elenco. O riso deslavado da chamada baixa comédia pode produzir obras tão penetrantes e vivas quanto qualquer outra linha expressiva. A questão é que, no caso deste espetáculo, tais recursos reduzem bastante o alcance da obra de Lima Barreto. Ao cabo, temos a embaraçosa sensação de que os atores estão se divertindo muito mais do que o público.
O pesquisador francês Pascal Debailly, em seu excelente ensaio Poétique de la satire (A poética da sátira, em tradução direta), diz-nos que o satirista, sujeito crítico e outsider por excelência, aglutina em si o riso e a indignação, a raiva e a angústia, sustentando, na esfera pública, a coragem de dizer as suas verdades, mesmo que para isso ele tenha de enfrentar delicados riscos. A sátira, nesta acepção, também nasce dessa lacuna entre o real (o mundo como ele está) e o ideal (o mundo como deveria ser) de acordo com as perspectivas políticas, ideológicas e éticas de quem escreve. Para Debailly, a criação satírica exprime, paralelamente, uma áspera desilusão e uma candente esperança. Assim sendo, o deboche e o escárnio, por mais grosseiros que sejam, contêm, no seu íntimo, um desejo de alcançar a liberdade, o sublime, uma vontade de destroçar as forças sociais que, naquele momento ironizado, aprisionam o pensamento e a imaginação. É essa ambivalência entre a gargalhada e a gravidade que parece-me estar ausente, quase por inteiro, na montagem em questão. Em inúmeras passagens a zombaria pela zombaria e o sarcasmo como um fim em si mesmo esvaziaram as densas reflexões de Lima Barreto. Ora, o próprio escritor diz-nos, em um momento indigesto, que a Bruzundanga deve ser julgada com “ironia e piedade”. Ignorando este pêndulo que vai da risada à severidade, a sátira de Barreto perde sua dualidade elementar.
No fundo, Os Bruzundangas parece almejar a mesma virulência, o mesmo choque, o mesmo golpe burlesco que uma montagem como O Rei da Vela, do Teatro Oficina (SP), teve no seu momento histórico em 1967, combinando humor revisteiro e tropicalista, alguma obscenidade, além de uma corrosiva crítica aos descaminhos sócio-econômicos de um Brasil desigual e retrógrado (sob a égide da ditadura, aliás). Contudo, a encenação de Carrera e Ornellas não consegue ir além de uma tacanha reprodução daqueles velhos esquetes que já vimos repetidas vezes em programas televisivos, como Zorra Total, A Praça é Nossa ou Casseta & Planeta. As imitações de políticos, as paródias de tipos sociais, além das piadas picantes só fazem desaparecer um elemento fundamental: a complexidade do pensamento político e literário de Lima Barreto.
Jean Marcel Gatti, por exemplo, recria com divertida precisão os cacoetes e a elocução de Bolsonaro, aludindo ao recente ataque de abelhas sofrido pelo líder da ultradireita. Porém, cremos que o potencial crítico destes expedientes cômicos tem se mostrado cada vez mais diluído, sobretudo diante de uma plateia majoritariamente de esquerda (ou ao menos progressista). Como é bom rir da parvoíce do ex-presidente; como é prazeroso vê-lo tão débil, como nos divertimos ao olhá-lo de cima para baixo. Mas será que estes pastiches têm alargado nossas análises políticas ou têm apenas nos confortado em nossa suposta superioridade moral? Se ele é tão burro assim, por que o seu movimento ideológico (o Bolsonarismo) é uma das forças mais dominantes da política brasileira? Por que gerou tantos novos representantes da extrema-direita? Só se apegar a estes aspectos, ainda que engraçados, flertando com o esquematismo divertido dos memes, apequena a amplitude das reflexões políticas mais sistemáticas. Para além da superfície grotesca e caricata, há estruturas de poder bem mais complexas, envolvendo milícias, a burguesia brasileira, grupos políticos etc.
Visto que tudo é uma grande galhofa, os momentos mais sérios e densos do livro acabam por não se sustentarem bem no palco. O exemplo mais contundente disso se dá quando o capítulo 21 – Pancome, as suas ideias e o amanuense – é teatralizado. Nesta parte, Lima Barreto narra as preocupações do excêntrico Visconde de Pancome, o Ministro das Relações Exteriores daquela terra fictícia. Mas, afinal, o que tanto aflige o chanceler? A incômoda presença dos bruzundanguenses de origem javanesa, “cousa que equivale aqui aos nossos mulatos”, explica-nos o autor. Construir uma Bruzundanga livre dos javaneses e exportar, nesse processo, uma imagem branca do país, é o grande sonho do ministro, considerado, ainda por cima, um heroi nacional. Aqui, Lima não tergiversa, nem vacila, mas encara tanto os discursos eugênicos abundantes na Primeira República, quanto o racismo higienista que varre para os subúrbios, para os manicômios e para as valas os corpos indesejáveis. Neste instante, Renato Carrera interpreta, de modo caricatural, um sujeito racista (talvez o próprio ministro do livro) que dispara asquerosos xingamentos contra os dois atores negros, Dani Ornellas e Hugo Germano, que, por seu turno, permanecem estupefatos, calados. Tirante o fato de que esta cena só reforça o discurso dominante sem apresentar contrapontos mais complexos, ela se afasta inteiramente da fina ironia do texto. Lá, o autor está a debater não exatamente a postura discriminatória desta ou daquela pessoa individualmente, mas o racismo de toda uma estrutura social cujo Ministro das Relações Exteriores ambiciona eliminar uma parcela da população. A encenação, uma vez mais, enfraquece a crítica do escritor.
É preciso admitir que fomos assistir a esta montagem com imensas expectativas. É indiscutível a significação histórica de um projeto que encena, pela primeira vez (salvo melhor juízo, reiteramos), esta pungente obra de Lima Barreto. Em nossa crítica ao espetáculo A Solidão do Feio, visto no Festival Internacional de São José do Rio Preto, destacamos a beleza e a importância de termos o saudoso Lima nos nossos palcos. Ele, que também foi dramaturgo e crítico teatral, jamais deixou de examinar o papel sociopolítico do teatro no seio de uma sociedade tão hierarquizada como a brasileira. Nestas condições injustas seria possível erigir um teatro nacional? Quem teria acesso a ele? As salas de espetáculo são espaços fomentadores de reflexões ou meras passarelas para o exibicionismo vaidoso dos ricos? Estas e outras indagações, expressas em crônicas, romances e contos (Uma Noite no Lírico e Um do povo, são amostras valiosas), projetam Lima Barreto, ao lado de Alcântara Machado (1901-1935), como um dos nossos mais inquietantes pensadores do teatro, nas primeiras décadas do século XX. Por tudo isso, nossas frustrações foram tão grandes quanto nossas expectativas.
O programa do espetáculo nos informa que Os Bruzundangas assinala o surgimento de uma nova trupe: a Bruzun Company. Nossas divergências não nos impedem, entretanto, de desejar boa sorte à nova companhia, reconhecendo que há motivos de sobra para celebrar o aparecimento de mais um coletivo na nossa conjuntura cênica. Dar o primeiro passo com Lima Barreto já é, apesar dos pesares, um gesto muito significativo.
FICHA TÉCNICA
Direção: Renato Carrera e Dani Ornellas
Direção Musical: Maíra Freitas
Direção de Produção: Bruno Mariozz
Elenco: Dani Ornellas, Hugo Germano, Jean Marcell Gatti e Renato Carrera
Cenografia: Daniel de Jesus
Figurino: Tereza Nabuco
Visagismo: Joana Seibel
Iluminação: Daniela Sanchez
Trilha Sonora Original: Maíra Freitas
Coreografia: Dudu Gomes
Assistente de Direção: Pedro Uchoa
Preparação Vocal: Carol Futuro
Assessoria de Imprensa: Marrom Glacê Comunicação
Programação Visual: Daniel de Jesus
Comunicação e Marketing: Rafael Prevot
Produção Executiva: Walerie Gondim
Assistente de Produção: Angélica Lessa
Fotografia: Roberto Carneiro
Produção: Palavra Z Produções Culturais
Idealização: Renato Carrera