por Luciana Romagnolli
Das tantas expressões já cunhadas para explicar o nosso tempo, uma das mais angustiantes é a “sociedade da desinformação”. Ela aponta um paradoxo contemporâneo: a avalanche informativa num mundo de analfabetos funcionais. Mais que isso: o fenômeno de um consumo crescente de informações mediadas e a incapacidade de arranjá-las em uma compreensão de mundo.
Esta sobrecarga de fatos, dados e opiniões; esta saturação que faz com que as informações passem a girar em falso; este “empazinamento” impossível de digerir é o que move o espetáculo “#SELFservice”, escrito e dirigido por David Mafra e apresentado pela Cia. Crisálida na Mostra de Dramaturgia do Sesi-Teatro Guaíra na noite de sexta-feira.
Na ação de Moa Leal engolindo sucessivamente nacos de salgadinhos além do limite do estômago, sem tempo de digestão, encontra-se a síntese da problemática posta em cena. Texto e encenação somam imagens e sentidos para um diagnóstico social contundente, no qual se revelam relações e implicações maiores dessa indigestão por excesso de informação. O consumismo é aspecto central, elaborado em metáforas e analogias gastronômicas que empanturram palavras e corpos.
Mafra constrói a dramaturgia a partir de enxertos de notícias de jornal e postagens de Facebook. A plagiocombinação como estratégia dramatúrgica na cibercultura (título, aliás, de um estudo do pesquisador e diretor Fábio Salvatti) é opção das mais coerentes com os propósitos da obra, fazendo ecoar nos ouvidos do público temas e frases reconhecíveis e replicáveis em outras tantas combinatórias no contato com meios de comunicação de massa tradicionais e com redes sociais.
A efetivação da estratégia é que poderia valer-se de um reordenamento menos reiterativo e mais provocativo dos fragmentos, incitando atritos, ressonâncias e inversões que acentuassem o absurdo ou o ressignificassem. Algo que só se realiza na peça por meio do embaralhamento radical das falas derradeiras da personagem de Jô Martinez.
Como diretor, David Mafra cria um mecanismo estético potente para colocar em crise o consumismo informacional. No campo do convívio, propõe ironicamente aos espectadores que mantenham os celulares ligados e não esqueçam a hashtag nas postagens sobre a peça. E que imagem gráfica poderia indiciar melhor essa avalanche desinformacional do que o #?
A cena, arma-a como um rodízio das falas de três atores, cada qual em sua mesinha de bar, numa atitude entre a performática e um anti-stand-up – se considerarmos o isolamento das vozes entre si e o humor rápido feito com observações factuais do cotidiano. Cada ator assume uma reação distinta que sustenta invariavelmente diante da promessa de faturar dinheiro online, da exportação de frango ou do canibalismo. Moa Leal, único cuja ação é mais potente que a fala, usa a ironia. Jô Martinez, a objetividade fria, inabalável. E Marcilene Moraes, um draminha ingênuo sensacionalista. Critica-se, assim, um espectro de posturas cristalizadas, todas a seu modo essencialmente indiferentes à coisa em si à qual reagem.
A medida da reiteração impõe-se como questão crucial para a encenação: até que ponto a fortalece e quando passa a enfraquecê-la? Uma frase de efeito tal qual “se um homem feio e pobre bate em uma mulher, é lei Maria da Penha; se for bonito e rico, é ‘50 Tons de Cinza’” dita uma vez causa riso. Redita, talvez faça pensar. E repetida à exaustão? Quando a saturação faz-se forma, e esta opera na previsibilidade, o efeito colateral pode ser de que o mecanismo da encenação passe a girar em falso (justamente como na sociedade da informação), submetendo seu potencial de crítica e afetação ao processamento e à pasteurização que lhe roubam o tempero. Ou o potencial subversivo.