Por Soraya Belusi (*)
Desde o século XX, a reflexão sobre as possibilidades dos elementos teatrais para além da imposição hierárquica do texto dramático tomou o primeiro plano do pensamento teatral contemporâneo, gerando uma série de teorias, estudos e práticas acerca desse debate. Desde então, uma diversidade de conceitos vêm sendo criados e utilizados pelos artistas de maneira global, incluindo aí termos que, muitas vezes, não bastam por si só para definir o que fazem: teatro visual, teatro-dança, teatro performativo, entre outros. É nesse lugar que parece se situar as investigações do grupo chileno Teatro Kapital, que trouxe a Belo Horizonte o espetáculo “La Matanza”.
“La Matanza” se utiliza de linguagens diversas, entre elas o vídeo (Foto Esquyna Latina/Divulgação)
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A partir do ensaio histórico “Os Grandes Massacres” (1972), de Patricio Manns, autor de origem também chilena, o grupo busca compartilhar no trabalho o seu ponto de vista sobre a recente história do seu país, aliando a isso suas indagações sobre os caminhos que escolheram para expressar em cena tal questão. Neste sentido, o grupo se alia a uma série de exercícios cênicos que trazem, para o encontro com o espectador, a questão não apenas do que falar mas também do como fazer.
Para isso, o trabalho toma como premissa a impossibilidade de se mostrar (seja narrando, dançando ou atuando, algumas das formas expressivas adotadas pelo espetáculo) a morte, a tortura e a miséria. Neste sentido, o grupo se alia aos estudos brechtianos de que não é possível recriar a realidade em cena, já que está é muito mais “cruel” que a ficção. Por isso, assumir a teatralidade seria fundamental para “conscientizar” e retirar o espectador de seu lugar de passividade.
O coletivo parece assumir esse ponto de partida para sua criação, incluindo em seu discurso cênicos elementos experimentados pelo dramaturgo e diretor alemão ao longo de sua pesquisa: a eliminação da identificação com o personagem, a inserção de elementos de teatralidade como a música e, no caso de “La Matanza”, também as projeções de fotos, a inclusão de dados históricos, a narração em oposição o texto dramático.
O trabalho, então, se alicerça sob essas duas vias (o ponto de vista sobre a história e o ponto de vista sobre o teatro), trabalhadas de maneira potente quando analisadas separadamente. Em certa medida, porém, quando cruzadas, esses dois vieses que parecem andar paralelamente em momento algum se entrecruzam e problematizam de fato, criando camadas de metalinguagem entre a realidade do grupo (suas escolhas estéticas, políticas) e a realidade histórica que buscam representar. As “provocações” quanto à forma e ao conteúdo do espetáculo parece ficar somente no plano do discurso verbal, materializadas nas perguntas dos atores ao longo da peça.
Por outro lado, a potência do grupo e o domínio dos elementos de linguagem que utilizam são notáveis. Embora com vários recursos em cena, parece ser o ator ainda o ponto central do trabalho. São eles que preenchem o espaço quase vazio (a não ser por algumas cadeiras e bancos) com a voz, o corpo, a presença.
Ao assumirem a impossibilidade de se alcançar a morte (impossível reproduzi-la enquanto forma ou tema), o grupo parece nos oferecer a certeza da manutenção da vida. Não apenas a do bebê que participa de toda a encenação, mas, principalmente do pequeno menino que, para mim, era o sopro de imprevisibilidade em meio à repetição de tantas histórias impregnadas de desumanidade e sangue.
(*) A jornalista foi convidada a cobrir o evento. Texto originalmente publicado no blog do Esquyna Latina.
Perdi o espetáculo por compromissos familiares. Bom ter a sua visão dele.
Perdi o espetáculo por compromissos familiares. Bom ter a sua visão dele.