— por Joyce Athiê —
Um dossiê que pretende falar sobre a diretora e atriz Cida Falabella há de caminhar pelo trabalho a que ela se dedica à manutenção de um grupo e de uma sede, aqui, evidenciando o espaço e o ambiente em que se insere. Seria possível, inclusive, olhar para a campanha política a que se debruça a atriz, neste 2016, conquistando o papel de vereadora, em uma campanha pautada pela cultura, mobilizando outros artistas do teatro e, inclusive, fazendo da sede do grupo um espaço de debate e abertura de propostas. Mas, por hora, deixemos a política strictu senso de lado. O presente texto é o resultado de uma conversa com a artista e seu filho Gustavo Falabella, também membro do grupo ZAP 18. O caminho percorrido tenta traçar apontamentos históricos e os modos em que o território geográfico e social ocupado pelo grupo dialogam com o teatro épico, tão homenageado nos trabalhos da ZAP, coletivo que vem ao mundo oficialmente em 2002, já carregando na bagagem experiências que viriam a amadurecer.
O bairro onde se localiza a sede – região que também abriga a casa onde Cida mora e criou seus filhos – figura, entre outros elementos, no cerne do trabalho, a ponto de dar nome ao grupo: a ZAP 18 – Zona de Arte e Periferia. Localizada no bairro Serrano, zona noroeste, em direção à Pampulha, a sede tem uma história construída e consolidada, muito embora enfrente toda a fragilidade e instabilidade do que significa permanecer com um espaço cultural erguido, sem uma estrutura contínua de sustentação do poder público.
O trabalho com a comunidade em que o grupo se insere data de um histórico anterior. A última ocupação que antecede a ZAP é a Cia Sonho & Drama, uma espécie de embrião do grupo que surge em 1979. Dentre outras heranças, ficou marcado fortemente na ZAP o encontro com a comunidade na experiência desenvolvida na última parada pela Sonho & Drama.
Ao longo de dois anos, 1997 e 1998, um galpão da rede ferroviária, em Santa Lúzia, serviu de espaço a Sonho & Drama, para ensaios, oficinas e construção das primeiras bases de um pensamento que vem se firmando e também se transformando ao longo dos anos, agora enquanto ZAP, sem desvincular da origem de onde carregam princípios e características até a atualidade.
“Santa Luzia foi um grande laboratório para nós. Vemos, ao longo dos anos, o valor que tinha o trabalho que fazíamos lá. A necessidade que existia nesses lugares foi uma acolhida do trabalho que nos deu a possibilidade de ver a coisa se transformando. Por isso, Santa Luzia foi meio celeiro para a gente. Trabalhávamos na parte baixa, com crianças mais carentes, com as pessoas envolvidas com o Congado. E isso tudo nos influenciou bastante. O que fazíamos tinha quase um caráter de assistência social. Passamos a ter contato com as famílias, tínhamos trabalho específicos para as crianças, tivemos uma interferência bem legal na cidade. A gente percebia que era um espaço profícuo para formação teatral e, além das nossas atividades, levávamos muitas atrações para lá. Ou seja, a ZAP já nasce com o desejo de atuar na formação, mas só agora conseguimos nos firmar como sendo 3 em 1, escola, grupo e espaço para apresentações, ensaios e oficinas”, comenta Cida Falabella.
Quando o grupo perdeu o direito de uso do espaço de Santa Luzia, em função de trocas de gestão na municipalidade, houve um racha entre os artistas. Alguns tomaram os rumos do Grupo Trama de Teatro, outros seguiram na construção da ZAP. Diante das perdas e das necessidades de reconstituição, alguns elementos vieram a calhar no sentido e na direção a que a ZAP tomaria. Era preciso uma nova sede e um novo nome. Pensar na história de um grupo, no espaço em que se insere, é também refletir na manutenção dos espaços e nas necessidades de políticas de fomento. A experiência provava que comodato, parceria com prefeitura ou poder público poderiam ser desastrosos, visto os fins da Sonho & Drama. Assim, o desejo era de ter espaço próprio. “Em Minas Gerais, estamos atrasados em relação à construção, manutenção de espaços dedicados aos trabalhos dos grupos. Temos muitos lugares ociosos e as relações de parcerias não se realizam de forma continuada”, comenta Cida.
A solução veio da relação familiar. Havia um lote do avô de Cida no bairro Serrano, que ela própria era responsável pelo cuidado com o terreno. Espaço utilizado pela vizinhança para lixo e entulho, foi murado para evitar multas da prefeitura. A ocasião já criava as bases para a construção da sede. Foi, no entanto, preciso vender uma van e as heranças divididas da Sonho & Drama para iniciar a construção do espaço desde a estrutura metálica do galpão, a fundação das sapatas, e o telhado. Rifas, amigos, venda de camisetas, bilheteria de espetáculos e algumas sobras de projetos de lei com outras destinações trouxeram o restante dos recursos para a construção da ZAP. Foram dois anos de obra – de 2000 a 2002, quando, em julho daquele ano, inauguraram um galpão e o espaço de atuação da ZAP Teatro Escola & Afins. Falar do espaço em que a ZAP ocupa ė também rememorar uma história afetiva e de resistência, desde o papel em que a equipe desempenhava em Santa Luzia, passando pelos esforços de construção da sede, quesitos que contribuíram para consolidar a história que se seguiria em relação à comunidade e também artisticamente.
Vale dizer que se instalar na periferia não foi apenas uma facilidade pelo terreno familiar. Havia também a possibilidade de se instalarem na zona sul de Belo Horizonte. Mas, além dos custos e do padrão de construção, havia também a questão do que seria desenvolvido dentro daquela instalação. O que se queria com um espaço? O nome ZAP responde. Já havia o desejo de trabalhar na periferia. Das guias do IPTU, retiraram a sigla ZL, que significava ficava zona de loteamento, a que o grupo acrescentou seu interesse: arte e periferia.
”Trabalhar na periferia e com a periferia era também algo que já se pensava com o trabalho, por exemplo, de Berenice Menegale, com o Patrus, com uma proposta de dar início à descentralização em programas como o Arena da Cultura, que oferecia oficina na periferia. E isso tinha muito a ver com o que fazíamos em Santa Luzia”, afirma Cida.
O trabalho de caráter social foi se politizando, buscando entender a realidade que os circundava no micro e no macro, assim como reforçando o lugar periférico ocupado, enfatizando as necessidades de descentralização das atenções e recursos.
Pertencimento
Com a sede erguida, deu-se início à dinâmica em relação aos vizinhos. Além de oferecer espetáculos para as escolas, inicialmente, os trabalhos eram apresentados gratuitamente ao público, sendo custeados por fundos de incentivo.
Embora favorável, a dinâmica não é perene e vive as interrupções dos recursos angariados por seleções em editais e patrocínios. “Vivemos ciclos sempre reiniciados. Um reiniciar que não é benéfico. A cada novo projeto, nova temporada, nova abertura de portas, tem que buscar novos caminhos do estreitamento das relações com a comunidade”, afirma Gustavo.
Embora presentes na periferia, de portas abertas a ela, com oficinas e espetáculos gratuitos ou a preços baixos, a presença da comunidade como fruidora das atividades da ZAP é uma permanente busca. “Nunca podemos achar que está dominado. Às vezes, vemos que não só não conseguimos manter o que cativamos, como, às vezes, perdemos os laços criados e o público diminui”, diz Cida.
As formas de tornar o espaço a casa da comunidade são muitas: jornalzinho como o ZAP Extra, carro de som. Quando afetado, o público torna-se parte, mas sofre com a descontinuidade das atividades, o que torna o senso de pertencimento algo líquido. Os públicos da ZAP, no entanto, estão além de seus vizinhos. Há também os familiares, amigos e a classe artística, e o público mais amplo de toda a cidade. Embora distante, segundo Cida, o espaço recebe espectadores de todas as regionais, em especial nas oficinas dedicadas a estudantes já iniciados no teatro, interessados em partilhar dos conhecimentos reconhecidos pela ZAP e pelos professores da escola.
A relação com os públicos para além dos limites do bairro também se estende a alguns trabalhos, em especial em “Esta Noite Mãe Coragem”, de Bertolt Brecht, estreada em 2006. As temporadas foram cheias e prestigiadas além do território da regional, mas recebeu, em especial, a presença do bairro e da vizinha.
O espetáculo traz à cena Thiago Macedo, morador do bairro e, à época, aluno dos cursos da ZAP. A presença de Thiago, ao lado dos artistas do grupo, era um símbolo das portas abertas de que ali a comunidade tinha espaço e luz para agregar e compartilhar signos e saberes. Assim como ele, outros alunos que já haviam finalizado oficinas na ZAP permaneciam sempre presentes e interessados em prosseguir com os estudos. Criou-se então a ZAP Conta, um espaço para alunos que queriam aprofundar as relações com o que o espaço oferecia. Nas atividades de formação da ZAP, havia (e ainda há) uma ênfase: o teatro épico. Era a ZAP 18 bebendo em Brecht e levando o real para a cena, uma realidade bem próxima ao lugar em que ocupava geograficamente e em diálogo com um diâmetro amplificado. O fazer teatral iluminava, além do resultado artístico, o processo e sua relação com a sociedade. A via dupla também se estabeleceu. O contato com o bairro, com a realidade dos jovens que frequentavam o espaço, em especial, nas oficinas, também deu outro dimensionamento ao trabalho do grupo.
Dez anos depois da estreia de Thiago no palco com a ZAP, ele segue com o grupo, agora já adulto. Para a companhia, ele trouxe também Rose, sua mãe, absorvida ao espetáculo como cantora. Ela tinha dois filhos estudando na ZAP e mantinha, na rua de cima, um bar que o próprio grupo frequentava e que também foi incorporado ao espetáculo e ao ambiente da ZAP.
“Era um bar cênico, mas que depois resolvemos fazê-lo de verdade. Abrimos uma janela no galpão e a ideia tomou corpo. No intervalo, as pessoas eram convidadas a irem no bar, comer um feijão tropeiro. A peça era invadida pelo cheiro dos preparos da Rose que fritava o feijão e as carnes durante a apresentação. Durante a temporada, as pessoas chegavam mais cedo. O bar passou a ser uma marca da ZAP, que se tornou um lugar de encontro”, conta Cida. “Era um programa que extrapolava a ideia do teatro e tomou outras proporções. Chegou a ter música ao vivo. E, mesmo ao fim da temporada, mantivemos o bar por um tempo”, lembra Gustavo.
Relações estreitas com o espaço e com a comunidade, Thiago retorna aos palcos, já adolescente, em “1961-2009 (2015)”, espetáculo marcante na história do grupo e na relação com o público que vê na sede da ZAP 18 um local de representatividade. “Alguns trabalhos acionam esse interesse, chamando pessoas ligadas aos DAs, DCEs, Levante Popular da Juventude, MST, Marcha das Mulheres, Movimento dos sem Universidade, e tantos outros”, aponta Cida. “Isso causou um diálogo que não se rompe, sempre se reativa e é reaquecido por várias coisas que aconteceram no percurso”, completa Gustavo.
“Há oito anos, quando começamos a falar com os movimentos sociais e com o MST, vimos que tinha muita gente organizada, com escolas de formação. Para a gente, foi impactante encontrar com eles e conhecê-los. E isso vai repercutindo no nosso dia a dia”, aponta Cida
Palco, comunidade e movimentos sociais, no entanto, se interligam também e reverberam quando a ZAP 18, em especial Cida Falabella, vai beber no teatro épico de Brecht. Como um corrimão que alicerça um percurso ou como uma lente para olhar com nitidez para determinada direção, Brecht serviu como inspiração e instrumento para dar leitura ao contexto a que a ZAP já estava imersa e circunscrita.
Era uma lente para olhar a realidade que ali estava posta e que a equipe da ZAP se deparava nas oficinas com os jovens, com o cotidiano do bairro, com a violência urbana e doméstica. “Gostamos muito de trabalhar com recortes que tem a ver com épico, prólogos, narrativas. Mas também viemos de uma realidade forte. Quando vimos essa realidade, o tráfico de drogas na região que é forte ainda, quando tivemos alunos que estavam envolvidos com tudo isso, ficamos pensando como lidar com isso. Quando íamos pra cena, as improvisações pareciam aqueles dramas de novela. E a gente pensava que não dava pra tratar aquela realidade daquele jeito”, lembra Cida.
Brecht adentrava a sala de ensaio do grupo e as referências pedagógicas da escola. Na preparação de trabalhos, alunos olhavam para a própria realidade e se colocavam diante de temas abordados, além do tráfico, a violência, provocados por uma experiência teórica e prática do teatro épico e dialético. O momento coincidiu com a retomada de Cida para a academia, período em que se conectou e voltou a reencontrar Brecht, em duas perspectivas que se alimentavam, a pesquisa na academia e a prática na ZAP. “Logo começamos a fazer ‘Mãe Coragem’. A peça é uma tentativa de ler essa realidade social, especialmente, do tráfico. A partir daí, voltamos com a pesquisa que já tínhamos iniciado em 2004. Começamos a usar Brecht nas oficinas, o que virou uma marca. Nos aprofundamos no que chamávamos de teatro documentário social”, conta Cida.
De trabalhos com abordagens sociais, com olhos apontados para o redor, Cida vai voltar-se para si, sem perder a dimensão da amplitude do que é falar de sua experiência enquanto mulher.
Interessante pensar como “Domingo”, solo de Cida, construído a partir de sua experiência pessoal, também carrega relações com outras vozes femininas e também com o bairro. Mais do que ser apresentado na Casa Amarela, onde reside no bairro Serrano, o espetáculo avança no trabalho de relação com a comunidade de outra maneira. A peça foi apresentada, uma única vez, para mulheres do bairro, abordando a presença feminina em relações amorosas e abusivas. Pós-apresentação, aquelas mulheres, que antes viam o movimento da casa, puderam participar de uma conversa próxima e pessoal, uma troca de vivências. “Para mim, vejo a Casa Amarela como uma extensão da ZAP. O trabalho dialoga com o que fazemos na ZAP e foi muito potente estar na periferia e poder falar das mulheres que sofrem as violência sociais, também no campo íntimo. Estávamos na minha casa falando sobre o que pode estar havendo dentro da casa delas”, comenta a atriz.
“Acho legal do ‘Domingo’ porque ele gera um encontro de coisas que são importantes e caras no trabalho da ZAP e na nossa trajetória. É um viés social, macro, que se encontra com as particularidades, com as pessoalidades, com as biografias. Isso já existia, mas é uma radicalização máxima que é trazer o pessoal pra cena e fazer que isso seja do interesse das pessoas”, afirma Gustavo.
Ele também está em vias de apresentar um trabalho em que a relação com a comunidade estará expressa no gesto de ir para a rua, extrapolando os portões da ZAP. “Existe essa barreira imaginária que diz que o espaço não é das pessoas. Elas acham legal ter um espaço desses no bairro, reconhecem a importância, ouviram e falam bem, mas não assumem aquilo enquanto delas”, afirma o ator.
Gustavo está ministrando uma oficina de capacitação em que pretende verticalizar o diálogo do teatro épico com a performance, algo que também aparecia em “Domingo”, por exemplo. Dessa vez, no entanto, as ruas da região do Serrano serão tomadas como espaço de ocupação, em uma intervenção que toma o carnaval como tema para dialogar com a comunidade pela via da festividade e da memória.
“O que segura é a ideologia, porque manter uma sede é economicamente é inviável. Temos muitos relatos de ex-alunos que seguiram carreira e temos uma relação muito forte com as escolas públicas. Não há pesquisas estruturadas para sabermos de que forma repercutimos no bairro. Mas, certamente, afetamos as vidas de algumas pessoas. Talvez façamos a diferença não pela presença. Mas, se não estivéssemos ali, faríamos falta pela ausência”, conclui Cida.