– Por Soraya Martins –
* * * O Horizonte da Cena faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, ao lado das seguintes casas: Ruína Acesa, Guia OFF, Farofa Crítica, Cena Aberta, Agora Crítica, Tudo, menos uma crítica e Satisfeita, Yolanda?
Entrevista maturada entre os dias 22 e 30 de outubro de 2024 em Belo Horizonte.
Apologia III, Teatro espanca! 2017. Anderson Feliciano. Foto: Pablo Bernardo.
Anderson Feliciano é um artista belo-horizontino que expande a noção de dramaturgia e da arte da cena, mistura letra, performance, instalação, cinema, artes visuais e teatro, dando a ver uma encruzilhada discursiva, comprometida com a proposição de arte enquanto janela para a imaginação. Dramaturgo, performer, diretor e curador, Feliciano se interessa pela possibilidade de criar outras formas de estar negro no mundo e de fabular linguagens forjadas a partir da fragmentada experiência dxs negrxs em diáspora.
Como dramaturgo, escreveu Tropeço (2020), composto pelos textos-ilhas “Pequeno tratado amoroso”, “Apologia III” e “Outras Rosas”, e O Início, textos que desfazem estereótipos e desorientam as expectativas do que seria uma dramaturgia e, mais ainda, do que seria uma dramaturgia autenticamente negra. Como performer, participou de vários festivais na América Latina e na Europa. Em seu mais novo trabalho, Sobre a ausência da pedra, dirigido por Flavi Lopes, coabita, se relaciona, observa, escuta, sente o peso e, sobretudo, tira o peso de uma pedra das costas, investigando as possíveis relações entre a dureza da pedra, a fluidez da água e do corpo em contínuo movimento de transformação. Já como diretor, estreou em 2023 a performance Prelúdio a Ismael Ivo, obra-celebração da vida e da obra do coreógrafo Ismael Ivo e dos trinta anos de carreia do artista evandro nunes. Nela, vemos como o artista trabalha na montagem e desmontagem das imagens e na elaboração do tempo como rotas de fuja a uma arte da representatividade.
Em entrevista, Anderson Feliciano fala sobre seus processos, escolhas e travessias.
SORAYA MARTINS: Gostaria de começar destacando o que na sua obra – seja como dramaturgo, diretor e performer – salta aos olhos: sua trajetória artística parece virar as costas, de maneira muita orgânica, a um tipo de arte que tenta ser uma espécie de tentativa de provar à branquitude a capacidade negra em cena e fora dela. Antes, você se concentra no movimento do signo negro, na sua incompletude e complexidade, nas rasuras e seduções, nos encantamentos e fracassos, para extrair dele – movimento do signo negro – o fragmentado, o pontilhado, o desejante e a opacidade.
ANDERSON: No prefacio para meu livro Tropeço (2020) o antropólogo e curador Hélio Menezes diz “e de modo despistador: onde queres o sim e o não, Anderson devolve com um variado talvez”. Desde o início, em meados de 2014, quando fiz uma viagem, de três meses, pela América Latina, que o movimento “elementar e seminal” da Poética do Tropeço é a articulação entre variados campos – da dramaturgia, da negrura, do cinema, das artes visuais e minhas andanças. Me interessa, nesse gesto, cultivar a possibilidade da queda como potência, o desequilíbrio, o provisório, a dúvida e, ainda, o “nomear sem fixar”. Todo esse processo que venho construindo nos últimos 10 anos é insumo para a pesquisa de mestrado que desenvolvo no momento e que, por hora, se intitula Dramaturgia-arquipélago: imagens da negrura e o direito à opacidade. Além de investigar algumas de minhas obras, as relaciono com a obra E agora falamos nós (1970), de Thereza Santos e Eduardo de Oliveira e Oliveira, e também a obra Uma, Outra (2021) de Amora Tito.
Compreender a plasticidade dos meus trabalhos e a potência do meu corpo em relação com a obra de outros artistas foi crucial para o exercício, como você aponta, de extrair do movimento do signo negro o fragmentado, o pontilhado, o desejante e o opaco. Por isso a experimentação. Fui construindo trabalhos que exigiam caminhos distintos. Estou pensando, por exemplo, no Apologia que, na verdade é uma série composta por três trabalhos. Em Apologia I (2016) construí a performance a partir do vídeo I have a dream do ativista pelos direitos civis estadunidense Luther King. Trabalhei com a edição do discurso dele. Queria experimentar a relação da dramaturgia com outras linguagens, principalmente com o cinema e as artes visuais. As questões formais estavam ligadas diretamente aos procedimentos de edição, brincar com o discurso do Luther King e construir outro em que atualizava questões que eram importantes para mim, sendo migrante em Buenos Aires. Foi muito importante atualizar questões que eram latentes nas décadas de 1960 nos Estados Unidos estando na Argentina em 2016. Assumir o corpo como discurso foi crucial na elaboração de Apologia II (2016). O mote para este trabalho foi a fotografia da também ativista pelos direitos civis Rosa Parks. Me propus a ficar sentado numa cadeira na encruzilhada das ruas que vivia em Buenos Aires durante 5 horas repetindo a frase “eu não penso que deveria ter que me levantar”. Já em Apologia III (2016) o exercício da curadoria apareceu como possibilidade, também formal, de trabalhar com imagens dos meus álbuns de família.
SM: A opacidade, conceito teórico do filósofo martinicano Èdouard Glissant, que diz dos processos de relacionalidade em liberdades, conecta-se tanto com o pensamento de Leda Maria Martins sobre a negrura [“o olhar do gato não confunde a noite com a escuridão”], quanto com o de Frantz Fanon, [“não há negro, há negros”]. Glissant, Leda e Fanon são três pensadores que te alimentam. Gostaria que falasse um pouco sobre como os pensamentos desses teóricos se articulam com o conjunto de textos que integram o seu livro Tropeço.
A: Quando fui convidado pela editora Javali para publicar o livro, devido à proposta apresentada, estabeleci a curadoria como um dos princípios para minhas criações. Como minha produção era vasta, foi necessário selecionar os trabalhos que relacionados na mesma publicação pudessem dar pistas da poética que venho desenvolvendo. Do processo cuidadoso e criterioso, selecionei as obras Pequeno Tratado Amoroso, Apologia III e outras Rosas. Cada uma, com sua singularidade, atravessada fortemente pela fragmentação e pela performatividade, como aponta o pesquisador e crítico Guilherme Diniz, [Anderson] “desenha imaginários instáveis e porosos, especialmente com relação ao ser/estar negro no mundo”. E essas formulações só foram possíveis a partir da leitura dos pensadores que você apontou. São eles que me dão régua e compasso para a construção, tanto conceitual, quanto formal, das obras que compõe a publicação e minha produção de modo geral.
É de suma importâncias para as Poéticas do Tropeço também articular uma ética tropeçante. Um modo de performar ‘desejante’ tanto em cena quanto no mundo que não abra mão das complexidades, das fragilidades e dos fracassos e que compreenda a importância do e com o outro. Vou me recorrer novamente ao Hélio Menezes que anuncia no prefácio do Tropeço “suspeito que talvez seja disso que também que este livro se trate, aliás: da prevalência do afeto como força matriz e motriz: da busca por formas expressivas que se entreguem voluntariamente ao risco, à topada, ao tropeço; do mergulho no nome próprio como prática inadiável do que se entende por vida”. E também a Diniz que, ao analisar sobre minha poética para o portal de dramaturgia, aponta que “ainda que em diversos escritos, as criaturas apareçam solitárias, há sempre um radical interesse pelo outro, um desejo por arriscar relações e diálogos imprevistos, capazes de abalar certezas, materializando um esforço por se implicar na presença de outrem”[1]. Talvez seja isso e muitas outras coisas, mas quando afirmo que esses pensadores me deram régua e compasso, é disso que quero dizer.
A partir da pesquisa que comecei a desenvolver no mestrado em dramaturgia na Universidad Nacional de las Artes de Buenos Aires e que agora dou continuidade na pós-graduação em Artes Cênicas na UFOP, estou articulando conceitualmente o que nomeio dramaturgia-arquipélago. A partir dessa imagem procuro organizar as ideias que desenvolvi no Tropeço. Tanto arquipélago quanto tropeço são imagens/ideias que guiam meus processos de criação. Parto do que o pensador e poeta caribenho Édouard Glissant estabeleceu conceitualmente como pensamento arquipélago. Quando conheci sua obra Poética da Relação pensei: “nossa, é tudo que me interessa, tanto conceitualmente quanto formalmente para articular o meu trabalho”. Forjar uma obra em movimento e em relação, que é construída em vários momentos, em lugares diferentes, com pessoas diferentes dialoga diretamente com o que ele estava propondo. Entendi que podia relacionar essas pequenas peças que fui construindo ao longo do tempo, e que ao aproximá-las estava construindo uma obra que era pura neblina e movimento. Desse modo o que era conceito, acabou virando procedimentos formais também.
SM: Em 2023, você concebeu e dirigiu “Prelúdio a Ismael Ivo”, um trabalho que celebra, ao mesmo tempo, o dançarino e coreógrafo Ismael Ivo e os trinta anos de carreira do artista, educador e militante evandro nunes. O trabalho fez temporada no teatro espanca! e compôs a programação do Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte – FIT BH 2024. Nele, é possível ver o jogo de dois elementos que, mais do que traduzir seu pensamento, é o seu pensamento em ação: a criação, montagem e desmontagem de imagens que formam, do mesmo modo que a linguagem, superfícies de inscrição privilegiadas para processos fabulatórios sobre/a partir dos corpos da negrura; e o uso do tempo na delicadeza, interessado em brincar com a demora, a vagareza e o devagar-devagarinho. Como foi anelar e trançar esteticamente esses elementos em “Prelúdio a Ismael Ivo”?
A: Só foi possível anelar e trançar esteticamente esses elementos pela confiança e entrega de evandro nunes. Parceiro de longa data que me convidou para conceber uma obra que celebrasse seus 30 anos de carreira. Durante o processo instauramos um espaço de trocas e experimentação dos procedimentos que utilizo na elaboração da Poética do Tropeço. A partir de exercícios de curadoria e maceração de imagens, construímos um inventário de gestos a partir da poética do coreógrafo e bailarino Ismael Ivo. Inventário este que serviu de dramaturgia/coreografia para a elaboração da obra.
Como você bem apontou, pensar sobre a demora, a vagareza, o devagar devagarinho é fundamental para fruição da obra. Me parece importante ressaltar que essa outra relação com o tempo é fundamental para o desenrolar e transformações das imagens que vão sendo inventadas na obra. E compreendo essas temporalidades expandidas como tecnologias ancestrais que surgiram do movimento de observação de transformação do . Aquelas folhas que na minha infância eu usava como arma para fazer com que meus primos ficassem se coçando por horas e depois via Zora Santos colhendo e preparando até que virasse algo deliciosamente comestível. Eram horas e horas para que aquela ortiga se transformasse. Era como se algo mágico acontece ali diante dos meus olhos. Acredito que seja necessário nessas ações duracionais que algo também se transformasse no corpo e no modo como o corpo é visto e, nesse sentido, essa temporalidade é crucial.
Prelúdio a Ismael Ivo, FIT-BH 2024. evandro nunes. Foto: Guto Muniz.
SM: No primeiro semestre, você esteve em residência no Espaço Lunar, da Cia Luna Lunera. Tal residência desaguou em “Sobre a ausência da pedra”, seu mais novo trabalho como performer, que contou com a direção de Flavi Lopes, o designer sonoro de Marcos Mateus e a concepção de luz de Tainá Rosa. Esse trabalho radicaliza na desmontagem das fronteiras entre performance, artes visuais, instalação e música, brinca com o tempo e cria imagens que escapam do lugar da representatividade e dos códigos e regimes de representação. Nesse sentido, fico interessada em saber mais sobre o não lugar da representatividade e da representação e da sua aproximação com as artes visuais nesse trabalho (na verdade, em todos os seus trabalhos).
A: Há alguns anos posiciono meus trabalhos na interseção da dramaturgia com as artes visuais, por isso, a noção de dramaturgia no campo expandido e cena-instalação me interessam muito. Em alguma medida, a Poética do Tropeço surge nas encruzilhadas dessas terminologias. Particularmente não me interessa definir meu trabalho como sendo isso ou aquilo, mas compreender o que essas terminologias apontam ou contribuem para as escolhas formais que faço. A princípio compreendia meu trabalho como dramaturgia. Ao relacionar o que escrevia com as artes visuais, a dança, o cinema, a música, a curadoria e colocar o corpo em jogo, noções como campo expandido e performatividades surgiram como alternativas para dilatar o campo da palavra escrita. Transitando por esses lugares percebi que as ideias de representação não davam contam de expressar o que desejava, foi onde a performance apareceu, ela tensiona esse lugar da representação. Desse modo fui construindo um caminho. Transitando, me relacionando e esbarrando entre essas linguagens artísticas, vou construindo uma poética também em movimento, em constante deslocamento entre as linguagens e certas terminologias.
O artista plástico Marcel Diogo e artista plástica chilena Fernanda Vasquez, parceiros de longa data, foram extremamente importantes no trânsito que estabeleci entre uma área e outra. Foram eles que apontaram aspectos das minhas obras que dilatavam os limites das ideias mais tradicionais da dramaturgia.
Em 2011 Marcel Diogo fez direção de arte da obra InSã: o universo do Rosário em nós, primeira obra que fiz com evandro nunes. A obra foi desenvolvida a partir da poética de Arthur Bispo do Rosário. Acreditava que em parceria com um artista visual alcançaria lugares que ainda não havia investigado. Em 2017 convidei novamente Diogo para direção de arte de Apologia III. Minhas obras Dentro (2015), Áquel día (2015), Déspues (2016) e Quando eu era criança eu não queria ser a Vera Verão (2016) tem direção de arte de Fernanda Vasquez.
Todo esse percurso acabou contaminando Sobre a ausência da pedra (2024), meu trabalho mais recente que, como você bem apontou, procurou radicalizar “na desmontagem das fronteiras entre performance, artes visuais, instalação e música”.
Quando você argumenta que a obra “brinca com o tempo e cria imagens que escapam do lugar da representatividade e dos códigos e regimes de representação”, fico feliz. Porque no fundo são sempre tentativas de fuga desses regimes e nunca sei como serão percebidas na relação com o público. Muitas vezes, no afã de desconstruir, acabamos apenas reproduzindo o mesmo imaginário, por isso, insisto no cultivo da dúvida, no desequilíbrio e na relação entre as linguagens. Essa movimentação instaura ruídos, desencontros, deslocamentos e me oferece mais possibilidades de criação.
Sobre a ausência da pedra. Espaço Lunar, 2024. Anderson Feliciano. Foto: Fabrício Rocha.
SM: Você pode comentar um pouco sobre o Núcleo de Pesquisa em Performatividades Negras, projeto que desenvolve no Galpão Cine Horto?
A: Forjado como residência de criação, onde articulamos teoria e prática, a proposta do Núcleo de Pesquisa em Performatividades Negras, que já conta com 3 edições, nasceu do desejo de construir um espaço de experimentação provisório e de compartilhamento da pesquisa que desenvolvo e também das minhas inquietações e dúvidas. Me interessava ampliar para fora dos muros da universidade o que investigo e, desse modo, junto de outros artistas e pensadores, construir pensamentos que dialoguem com a complexidades de nossas experiências. A partir da análise de produções contemporâneas de artistas negros o processo de criação torna-se processo de conhecimento coletivo, gerando um espaço que potencializa a relação com o outro. Cada edição tem como alicerce conceitos cunhados por intelectuais negros. Para a primeira edição selecionei as ideias em torno do conceito Corpográfias, de Ricardo Aleixo, para a segunda Fabulação Crítica, de Saidiya Hartman, e Fred Moten para a terceira, com seu pensamento de imaginação radical.
[1] Link para o texto na íntegra: https://www.portaldedramaturgia.com/profile/anderson-feliciano