– por Marcos Antônio Alexandre – Faculdade de Letras – UFMG/CNPq –
INFILTRADXS é um trabalho que surge dentro do contexto acadêmico. Estreou em fevereiro de 2017, no Auditório da Escola de Belas Artes, encenado por alunos do curso de Teatro da UFMG, sob a coordenação dramatúrgica e a direção geral de Antonio Barreto Hildebrando, professor da Escola de Belas Artes, dramaturgo e diretor com dezenas de trabalhos produzidos em Belo Horizonte voltados para o público adulto e infantojuvenil. Como diretor-encenador, Hildebrando tem em seu currículo artístico uma vasta experiência na concepção de propostas espetaculares, merecendo destaque o fato de o artista apresentar a peculiaridade de trabalhar com um elenco de alunos-atores com experiências diferenciadas e distintas, sempre extraindo o melhor de cada intérprete que participa de seus processos de montagens.
Já nas primeiras apresentações, o espetáculo teve ótima recepção, levando os envolvidos a realizarem outra temporada na Escola de Belas Artes, em março. Com a divulgação e a projeção alcançadas, agora como um coletivo recém-formado, com produção da Casa 3 Cultural, Olá e Grupo Oriundo de Teatro, o grupo sai do espaço universitário para ganhar os palcos da cidade com uma pequena temporada no Teatro Marília de 28 a 30 de abril.
No programa do espetáculo e na página do evento criado no Facebook, o público recebe a seguinte informação: “Leia com atenção e não diga que não avisamos! Impróprio para menores de 18 anos. Temática complexa. Cenas de nudez erotizada e de pornografia leve. Violência explícita e subliminar. Linguagem de baixo e baixíssimo calão. Interatividade compulsória. Traços de cinismo cruel; de engajamento genuíno; de panfletarismo vazio e de…”
A sinopse da peça, em si, já diz muito e “ilustra” bem o que o espectador vai encontrar na proposta espetacular. Interessante observar que a forma direta com a qual o texto é explícito no ato de “convocar” o espectador se materializa no palco, nas cenas que são concebidas e incorporadas. Chama atenção as ideias sugeridas de uma “temática complexa”, de “engajamento genuíno” e de “panfletarismo vazio e de…”; pois o que se observa é que, de fato, a temática proposta no espetáculo é complexa, o texto é multifacetado, cheio de enredos e conflitos paralelos e polifônicos.
O engajamento é observado desde o início, quando os espectadores aguardam na fila e uma integrante do grupo (Beatriz Novaes) entrevista, aleatoriamente, parte do público, de forma direta e bem-humorada, fazendo perguntas utilizando um megafone, diante de todos os presentes, sobre o seu Sexo, a sua Identidade de Gênero e a sua Orientação Sexual. Desde este primeiro contato, o público presente já começa a ter referência sobre a temática da peça e se posiciona de distintas formas, expondo os seus lugares discursivos de fala. Alguns demonstram um posicionamento claramente engajado, ao passo que outros ficam no “politicamente correto”, alguns se recusam a responder, muitos riem, mas a grande maioria se coloca de sobreaviso sobre os possíveis “aspectos”que lhe serão apresentados.
O “panfletarismo” trazido para a cena é sem dúvida uma estratégia do teatro de cunho político e não tem nada de “vazio”, muito pelo contrário, uma vez que o espetáculo “brinca” com os lugares por onde perpassam os afetos dos sujeitos ali imbricados e com a questão do gênero, construindo um canal de vetores simbólicos (Pavis, 2003) que se multiplicam e levam o espectador para uma tomada de consciência – ou, no mínimo, obriga que este olhe o mundo à sua volta.
O didatismo, ferramenta típica da “estética panfletária”, é mote estrutural da peça e tudo é feito com humor, descontração, irreverência, mas, sobretudo, com muita ironia e reflexão. Para adentrar o espaço onde o espetáculo será apresentado, o público passa por uma “vagina” (uma instalação?) que o leva em direção ao palco – espaço cênico de representação – de onde ele assistirá a um vídeo explicativo sobre a questão do gênero e o universo trans*. Neste transcurso, o espectador vai se deparando com vários corpos-presenças que, performativamente, vão se mostrando, construindo tessituras de histórias fragmentadas. Corpos-marcas, seminus, cheios de inscrições textuais, alguns pronunciam (sussurram) discursos entrecortados e contundentes (performance?).
Num segundo momento, caem as cortinas do “teatro” e, do palco, a plateia assiste às artistas travestis/travestidas que dançam, cantam e executam o número musical “Xibom Bombom” (ritmo que ficou conhecido com o grupo musical As Meninas), de forma performática, descontraída e provocativa. A plateia se diverte e é convidada a tomar o seu lugar convencional, pois o palco será ocupado, sendo dividido em três espaços, onde acontecerão cenas e “histórias” diversas, dando início à “fábula cênica”. O público vai assistir a um talk show no qual lhe serão apresentadas algumas travestis :
CORO – Estamos chegando pra te confundir / Você vai ter que ser esperto e adivinhar / Quem que é normal no meio das travestis / Ou quem é viado e veio aqui te enganar/ Tem também sapata se passando por moça / Tem pai de família que é quase mulher / Gente que se esconde, pois no fundo é outra coisa / E só no final você descobre o que é / Façam as apostas, / A largada foi dada/ Vamos logo descobrir quem é / A infiltrada/ A infiltrada/ A infiltrada / A infiltrada
APRESENTADOR: Boa noite, auditório! Boa noite, você aí de casa! Está começando “A Infiltrada”. E o programa de hoje está imperdível! Temos a participação da diva Sally Minnelli e convidados especiais, com vocês. Os Travestis!
TODAS:AS TRAVESTIS!! (Hildebrando, 2017, grifos meus)[1]
O jogo é estabelecido. Está claro para a plateia qual é o seu papel dentro da proposta cênica, que é assistir aos números artísticos que lhe serão apresentados e, em algum momento, julgar, ou melhor, tentar descobrir quem não se encaixa naquele “lugar de enunciação”, revelando-se como a impostora. Logo no início, temos uma chamada de consciência quando o Apresentador trata As Travestis inadequadamente invertendo o gênero nominal e ocorre a correção em uníssono por parte de todas, demostrando o que muitas pessoas ainda insistem em não entender: que o gênero é uma construção social que possibilita aos sujeitos exercerem um papel na sociedade, mas, antes de tudo, é também uma construção identitária e individual. Os lugares sociais são construídos quase sempre a partir de posições e instâncias hegemônicas de poder (Foucault, 1982), mas, hoje, as posições engessadas têm sido questionadas, não se aceitando a ideia de formas fixas de identidades, sendo essas vistas como processos em constante construção. INFILTRADXS traz esta discussão para o jogo cênico proposto pelos atores e atrizes, com vistas a que fiquemos atentos às nomenclaturas de gênero e, acima de tudo, com o propósito de que sejam aceitas as diferenças.
É como se eu passasse a vida inteira levando uma vida que não é a minha e de repente eu me encontrei, eu me achei. … Mãe, eu não quero que você sofra, infelizmente existe preconceito na sociedade, mas isso é defeito dela, não meu! Tá, eu já vou falar! Mãe, eu te amo e eu sou… Eu sou um dinossauro. É isso! Eu sei que parece absurdo, mas é mais forte que eu! Desde criança eu sou um dinossauro, eu nasci dinossauro. E daí se eu nasci em corpo de garoto? Eu sou um dinossauro e eu não tô sozinho! Existem outros dinossauros no mundo, tem um monte de dinossauro igual a mim por aí, entende? No dia que eu descobri que era um dinossauro, tudo fez sentido. Eu me sinto bem assim, eu me sinto feliz, eu me sinto eu. E eu gostaria que você entendesse e gostasse da ideia de ter um filho dinossauro, mas fica tranquila, eu levei o maior tempão pra entender isso, a senhora pode levar o tempo que for preciso. (Hildebrando, 2017)
Como encenador, Hildebrando se utiliza de distintas linguagens artísticas na construção da proposta espetacular. O espectador mais atento encontrará na peça desde ecos de influências brechtianas até as incursões pela dramaturgia do espaço e o uso de elementos dos estudos performativos (happening/ instalação), do teatro documentário, vídeos etc. A maneira como ele se apropria e rompe com as linguagens cênicas é comum à sua estética e já foi provada e aprovada em outros espetáculos, demonstrando que sua arte não se prende a uma estratégia formal de concepção do texto espetacular, aproximando e cruzando a sua encenação com os recursos estéticos da performance, entendida aqui a partir dos argumentos de Eleonora Fabião (2009).
A estratégia da performance é resistir a definições. Ela trata justamente de desnortear classificações, de desconstruir modos tradicionais de produção e recepção artística. É um expoente da arte contemporânea porque suspende certezas sobre o que seja “obra de arte”, “espectador” e “artista” ao lançar perguntas desconcertantemente fundamentais como: o que é arte? o que move a arte? o quê a arte move? quê arte move? Enquanto gênero, a performance não fixa formas espaciais ou temporais, não utiliza mídias ou materiais específicos, nem estabelece modos de recepção ou critérios de documentação. Alguns performers trabalham em espaços públicos, outros em galerias ou demais espaços destinados à fruição artística, outros em seus próprios estúdios ou casas, enquanto outros preferem espaços rurais. O mesmo sobre a temporalidade da performance: há peças com duração de um ano enquanto outras duram horas, minutos ou mesmo segundos. Quanto às mídias e materiais utilizados pelos artistas, a diversidade também é grande. Quanto à recepção da performance, também impera a indeterminação: alguns artistas performam para espectadores (que tornam-se cúmplices ou testemunhas de seus feitos), outros com os espectadores (que tornam-se assistentes e até mesmo co-realizadores do evento), e outros sem espectadores (e optam por documentar ou não as ações realizadas).
Os argumentos de Fabião, pensados para a definição da performance, são corroborados no texto alinhavado pelas mãos de Hildebrando, nas cenas propostas pelo espetáculo e também por meio de suas próprias palavras, que, como encenador e coordenador de dramaturgia, descreve na breve apresentação da montagem idealizada para compor o programa do espetáculo:
Tarefa: conduzir uma montagem. Tema Escolhido: questão de gênero. Complexo. Complexo demais, polêmico demais. Demais. Amarração dramatúrgica: Televisão. Zapeando, Internet? Fragmentos. Conexões desconexas. […] Buscando classificar, mas cansado de formas já nomeadas. Bufonaria? Grand Guignol? Revista? Besteirol? Teatro Épico? Dialético? Documentário? Biodrama? Boulevard? Rapsódia? Alguma coisa performativa? Work in progress or work without progress? Colagem? Montagem? Bobagem… ou não. (Hildebrando, 2016)
Esta descrição, sincera, escrita em tom de ironia, seguindo a proposta espetacular, é, ao mesmo tempo, muito reflexiva, deixando para o espectador a tarefa de “pescar” as linguagens utilizadas, mas, principalmente, refletir sobre o resultado que lhe será entregue em cada cena do espetáculo/performance/talk show/cabaré/programa televisivo – para evitar fechar a classificação quanto ao tipo de proposta cênica realizada.
A montagem apresenta um trabalho singular de um grupo de jovens artistas que se entrega ao seu ofício. Estão em cena Aléxia Rinco, Alice Mesquita, Brenda Alaís, Anna Miranda, Anair Patrícia, Beatriz Novaes, Eliezer Sampaio, Felipe Guimarães, Guilherme Pereira, Gustavo Sousa, Igor Fonseca, Jéssica Nunes, Marcos More, Raniele Barbosa, Tiago Farias e Túlio Dayrell. Evidencia-se que todos os envolvidos acreditam na potência dos textos que estão apresentando, doando-se às cenas a partir de uma consciência e de um despojamento corporais rigorosos, de uma apropriação precisa do uso do espaço e das imagens, de um texto, alinhavado por Antonio Hildebrando, mas construído a partir das vozes dos atores e atrizes envolvidos, dando vazão a uma multiplicidade de falas, sentidos, identidades, e tudo isso em sintonia com outras vozes discursivas – Liza Minnelli[2], Marcelino Freire[3], Nívea Sabino[4], Patrícia Coelho – que nos dizem muito sobre os temas “polêmicos” e “complexos” retratados.
Como costumo defender, em minha concepção crítica, o teatro, além de “entretenimento”, deve (ou deveria pelo menos tentá-lo) contribuir para a reflexão de seu público (tanto o leitor, destinatário dos textos dramáticos, quanto o espectador, principal receptor da montagem), fazendo com que as pessoas possam se sentir “modificadas”, ou pelo menos “tocadas”, pelo contato com o que assistiram. INFILTRADXS consegue cumprir com este papel. O espetáculo continua reverberando na gente. Depois de nos divertirmos com a descoberta da verdadeira identidade da “personagem infiltrada”, somos convidados a deixar o teatro sem respostas prontas, mas não sem acurar as nossas dúvidas, inquietações e reflexões… Pela saída não convencional do teatro, o público, assim como entrou para “experienciar” o espetáculo, é convidado a se retirar enquanto xs atores/atrizes/personagens lhe sussurram trechos (fragmentos, rasuras) de um texto de Patrícia Coelho:
Depois do fim do mundo resta o quê? Que que tu vai fazer depois que a tua grana não comprar mais nada? Que que te interessa se João amava Joaquim ou Teresa ou os dois ou ninguém? E se não sobrar ninguém? E se no fim da festa Deus estiver vestido de mulher? Cara de mulher, corpo de mulher. Deus transexual, transgênero, fluido, travesti? Os anjos não têm sexo. Tu vai dizer. Então por que tu se importa se eu tenho e faço bom proveito? E se no fim das contas só sobrar você?
Enfim, INFILTRADXS aciona instâncias micropolíticas que agem coercitivamente sobre os indivíduos e suas identidades. Sem dúvida, reitero, trata-se de uma peça que não só diverte o público, mas o convida a refletir sobre as suas afetividades, identidades, ideologias, posicionamentos críticos e sociais. Como uma provocação sociopolítica nos faz rever como nossas sociedades contemporâneas são segregadoras. A peça, de forma lúdica, cumpre com o papel do teatro de divertir a plateia, mas não deixa de fazer com que repensemos os nossos papéis como sujeitos sociais. Sem dúvida, como outros trabalhos artísticos concebidos por Antonio Hildebrando, trata-se de um teatro que é comprometido com as questões políticas e sociais de seu tempo. Por sua vez, o corpo de cada artista envolvido no trabalho se transforma em uma ferramenta que se coloca em toda a sua potencialidade em prol das cenas e das discussões empreendidas, deixando de ser apenas instrumento do/a ator/atriz e assumindo outras consciências.
Referências:
FABIÃO, Eleonora. Definir performance é um falso problema. Diário do Nordeste. Caderno 3. 09 jul. 2009. http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/caderno-3/definir-performance-e-um-falso-problema-1.281367. Acesso: 12 abr. 2017.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 3. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1982.
HILDELBRANDO, Antonio. INFILTRADXS. Belo Horizonte, 2017. (Não publicado)
INFILTRADXS. Programa do Espetáculo. Belo Horizonte, 2016.
PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. Trad. Sérgio Sálvia Coelho. São Paulo: Perspectiva, 2003.
[1] Texto cedido pelo diretor Antonio Hildebrando.
[2]Liza May Minnelli, atriz e cantora americana, nascida em Los Angeles. Eternizou-se no cinema como a dançarina Sally Bowles, no filme Cabaret, que lhe rendeu o Oscar de melhor atriz. É uma das referências para o universo queer.
[3]Marcelino Juvêncio Freire é um escritor pernambucano, nascido na cidade de Sertânia. Publicou diversas obras, entre elas Contos Negreiros, pela Editora Record, 2005.
[4] Nívea Sabino é poeta/slammer nova-limense, ativista, educadora social e integrante do Fórum das Juventudes da Grande BH. Lança, em 2016, Interiorana, seu primeiro livro pela editora Padê Editorial, Brasília, São Paulo.