Texto escrito a partir de Hilda Penha do Grupo Mulheres Míticas (Belo Horizonte).
– Por Clóvis Domingos –
Foto: Alexandre Hugo
Fui até a cozinha passar um café forte e tentar me refazer do impacto causado após assistir ao vídeo-teatro Hilda Penha, o mais novo trabalho do Grupo Mulheres Míticas com direção de Sara Rojo e atuação de Marina Viana. Nessa criação as imagens, palavras e sensações ardem e queimam, não mais nos abandonam. Trata-se de uma encenação da dor com seu inventário de marcas, sombras e restos de uma violência que não cessa de se inscrever. Ficcionaliza a partir de um fato histórico (um assalto a banco realizado por jovens guerrilheiros do Movimento Lautaro no Chile dos anos de 1990 e que termina com oito mortos) o drama de uma mulher que perde seu filho para a truculência policial e do Estado. A dramaturga Isidora Stevenson retira da clandestinidade a vida e história de gente miúda, comum e anônima, destroçada pelos mecanismos opressores das ditaduras latino-americanas. Através dessa peça há uma tentativa de se romper com o silenciamento imposto àqueles que subalternamente são atropelados pelas injustiças e desmandos da História.
Quando se arranca de forma abrupta o corpo de um filho da presença física de sua mãe é como se também amputasse uma parte do corpo de uma nação. Um filho morto é também um pouco uma mãe morta, ambos transpassados pelas necropolíticas do terror. Dou alguns goles no café e descubro Hilda ainda ali embaixo da pia da cozinha, desalentada e com o olhar perdido. Ela não consegue seguir em frente. Um filho desaparecido é como uma planta desenraizada do solo/colo materno. É como um “corpo que se transforma num copo de vidro” como nos diz a personagem.
Daquilo que lateja
Numa poética do despedaçamento (expresso tanto na vivência emocional da personagem quanto na estruturação cênico-dramatúrgica do trabalho), aos poucos vamos costurando os fragmentos e sobras que nos chegam numa espécie de quebra-cabeça que para nós enquanto espectadores pode até se completar e fazer sentido, mas que para Hilda é pura desorientação e esgarçamento. Nesse jogo dialético entre perplexidade e resolução, caos e cosmos, o poético e o político se intercruzam, não mais como a História oficial com sua narrativa dos vencedores, mas sim os pequenos fatos, relatos e feridas, isto é, o que fica escondido e “fora dos livros”.
Num tempo enxuto, o real aqui é invadido de teatralidade, como se acompanhássemos o que Hilda nos conta e aquilo que ainda não sabe dizer, mas nós compreendemos. Ela não sabe nem pode explicar intelectualmente o que se passa com ela e com seu país, mas seu corpo testemunha esse vazio, essa perda inominável, é um documento em “carne viva”. É quando a ausência de linguagem se encontra convertida numa intensa “gramática da dor” como assinala em seus textos a antropóloga indiana Veena Das. Aí neste ponto, como ação reparadora e política da comoção (Judith Butler), a arte tentaria se aproximar desses “contornos do irrepresentável”.
Isidora Stevenson denuncia a falsa democracia de um Chile em sua promessa de reabertura política pela ótica de uma mulher (uma cabelereira) e consegue de forma cirúrgica (com delicadeza ela toca no brutal) retratar uma história singular através de um tema universal como a morte e a maternidade. Sua mirada microscópica rasura a invisibilidade feminina tão predominante em nosso continente. Em seu texto a complexidade se configura numa escrita estilhaçada feito lâmina: parece sugerir que o corte é leve e superficial, mas a ferida se revela profunda. Uma composição rigorosa, sonora e imagética para abordar a decomposição do corpo, da vida num dia de Natal, dos direitos humanos, de um país. Somos enredados.
Hilda Penha não fala do passado (pois não passou), fala de nosso presente. Conecta Chile e Brasil: realidades nas quais ecoam as dores de tantas mães vítimas de governos assassinos. O cheiro do meu café agora frio se mistura ao odor das folhas de repolho (também rasgadas como Hilda) dispostas sobre a pia.
A mortalha do amor
Os objetos presentificam a ausência do filho: a jaqueta dobrada que a mãe recolhe, a coleção de sacolas, as janelas e portas dos cômodos da casa. Compartimentos vazios pelos quais ela (também alquebrada no corpo e na alma) vagueia, como num ritual fúnebre. Só lhe resta falar e deambular. Está presa num presente cinza e num passado talvez com alguma cor. Caminhar, entrar, sair, retornar, procurar e juntar sacolas brancas como se remodelasse o corpo do seu filho morto e vivo.
Dentro do nevoeiro
Há algo como uma espécie de neblina que paira sob a tessitura desse trabalho. Opacidade, lapsos, pausas, aparição e fantasmagoria. Palavra e silêncio. Realidade e delírio. Penha foi “jogada de um penhasco existencial” e tenta sobreviver. Somos seus companheiros nessa vala funda e precisamos escutá-la. Ela não é como “A Mulher que Andava em Círculos” (título de um trabalho de 2016 do Mayombe Grupo de Teatro também dirigido por Sara Rojo e interpretada por Marina Viana). Ela não canta canções revolucionárias e nem nos apresenta seu “museu de memórias”, pelo contrário, Hilda sussurra e geme baixo, nos convida a habitar os subterrâneos daquilo que ainda não tem possibilidade de luto, elaboração e revolta, força-nos a um contato com a aspereza de um material bruto, com o mal-estar diante do Real.
Nos dois trabalhos referidos uma mesma ação se repete: uma mulher pendura objetos num varal. Penha pendura sacolas enquanto a outra mulher prendia lenços. Seriam desfigurações, rostos perdidos e metáforas de corpos roubados e desaparecidos? Impossível responder e talvez isso nem importa. Ela não pode seguir adiante.
Na relação com esse trabalho haveria também uma dimensão de liminaridade e fronteira: somos um pouco Hilda ao mesmo tempo que somos os cúmplices e os outros de sua travessia. Esse habitar um dentro-fora do nevoeiro gera certa instabilidade em nossa recepção que ora acontece por envolvimento, ora precisa buscar certo afastamento, num entre-lugar situado numa linha quase indiscernível. Mas não há o que explicar, cabe apenas suportar.
Dolorosas transições
Foto: Alexandre Hugo
Hilda Penha é uma moldura sobre as transições na vida de uma mulher. Solteira, depois se tornou mãe através de um processo de adoção e agora se vê sem o filho. Transita também entre vida e morte. Seu corpo em estado de choque experimenta transformações. Assim como Brasil e Chile em constantes e ininterruptos processos de transição política e social. Como nós agora vivemos essa estranha modificação num mundo pandêmico com o contexto da Covid-19.
A personagem não está sozinha em cena, pode contar com a solidariedade de Marina, Sara, Isidora, Jéssica, Luísa, Felipe e de tantos outros artistas que constroem esse projeto. Eles se importam com ela. Juntos não se conformam e não querem seguir para frente, querem ficar aqui e ao seu lado. A atuação de Viana como Hilda é econômica e introspectiva, carregada de gravidade. Seu silêncio transmite estupor, lentidão, fragilidade, pedido de socorro.
A imagem significativa da chuva fina que cai na cidade, onde algumas ruas trazem nomes referentes às culturas indígenas originárias que por aqui foram dizimadas (Timbiras, Guajajaras, Goytacazes), se mostra como um gesto de contextualização por parte do grupo, e que, encontra ressonância com os mapuches (povos indígenas que vivem no Chile). São vidas marginalizadas. Vêm desaparecendo há séculos como até hoje são eliminados corpos negros, pobres, gays, das mulheres. Assim como sumiram com o filho de Hilda.
Nem mesmo essa chuva parece conseguir despertar o corpo anestesiado da mulher numa cidade que não para, segue adiante. Em meio à vastidão, Hilda é solidão.
Mães e mãos
Ela não é uma mulher mítica, apenas mais uma das milhares de mães e mãos que aí estão sustentando o peso do mundo e que ninguém as vê e reconhece. Na cozinha busco segurar as mãos de Hilda com suas unhas gastas e sujas, mas ela apenas me olha como se me lembrasse da nossa condição de precariedade: somos todos interdependentes, existências vulneráveis e carregamos um corpo “fresco, inchado, podre, seco”. Diante de tanta injustiça, não há o que consolar, mas sim indignar. Mães de Apoquindo, Mães de Maio, Mães da Candelária, Mães do Brasil, Mães de Luta. Mãos vazias.
Sento ao lado dela e me rendo à sua dor e despossessão: “No ve que después se va a podrir. No va a poder hacerse nada después”.
Como escutar essa dor?
É possível ainda seguir?
Ficha Técnica:
Direção: Sara Rojo
Dramaturgia: Isidora Stevenson
Atuação: Marina Viana
Assistência de Direção: Felipe Cordeiro
Direção de Fotografia e Montagem: Alexandre Hugo
Direção de Arte: Sara Fagundes
Concepção de Figurino e Dramaturgismo: Jéssica Ribas
Trilha Sonora: Juan Rojo
Preparação Corporal: Lucas Resende
Tradução: Jéssica Ribas, Luísa Lagoeiro, Sara Rojo
Assistência de Direção de Arte: Raquel Junqueira
Captação de Áudio: Jéssica Ribas, Luísa Lagoeiro
Legenda: Luísa Lagoeiro
Seminários Teóricos: Bruna Kalil Othero, Cátia Maringolo, Edmundo Araújo Neto, Laura Gomes, Louraidan Larsen e Maraíza Labanca
Confecção de Vestido: TTeresa Texto Tecido por Jonas Samudio
Peças de Figurino: Camaleoa Brechó por Thiago Flores
Coordenação de Comunicação: João Santos
Projeto Gráfico: Luiz Gustavo Santos
Produção executiva: Luísa Lagoeiro
Gestão do Projeto e Prestação de Contas: Érica Hoffmann
Realização: Mulheres Míticas
Apoio Cultural: Sesc MG