– por Victor Guimarães-
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Crítica do espetáculo Herança, da Cia Burlantins, visto em sua estreia no Teatro Minas Tênis Clube, em Belo Horizonte, no dia 24 de março de 2022.
Quando imaginamos o que pode ser uma obra cênica em homenagem ao cinquentenário da carreira de um grande artista da música popular, de trajetória amplamente reconhecida – como é o caso de Maurício Tizumba –, algumas expectativas vêm à mente. Ainda antes do terceiro sinal, já intuímos as canções conhecidas entoadas pelo público local, o tom de celebração reverente de um percurso já conhecido, a trajetória ascendente, os constantes aplausos em cena aberta que se devem à mera presença do artista amado no palco. Imaginamos, sobretudo, uma relação sem arestas entre palco e plateia, já que a admiração prévia pelo homenageado – e a linguagem hegemônica do musical contemporâneo – prepara o público para uma experiência harmônica e uníssona. Mas quando sabemos de antemão que esse espetáculo é dirigido por Grace Passô – que há pelo menos uma década pode ser chamada, sem exagero, de mais inventiva artista brasileira viva, sempre na ponta de lança da experimentação formal e no fio da navalha do desencontro provocativo entre espectador e obra – um curto-circuito cheio de promessas se esboça.
Logo no início de Herança, uma fisionomia começa a se desenhar. No palco, Sérgio Pererê – outro reconhecido expoente da música afro-mineira, discípulo e parceiro eventual de Tizumba, mas com uma marca autoral própria – toca um instrumento de percussão e recita palavras em uma língua desconhecida, enquanto Júlia Tizumba – atriz, cantora, pesquisadora e filha do homenageado – as traduz para o português numa gesticulação expansiva. Enquanto vemos em projeção no fundo do palco fotografias do povo Bamum, que se estabeleceu no território atualmente conhecido como Camarões, Júlia nos conta a história de um reino vigoroso, que chegou a inventar um alfabeto próprio, mas que seria desfeito no início do século XX pela colonização alemã – e depois francesa – na região. A primeira aparição de Maurício Tizumba, o homenageado da noite, é cruzando velozmente o palco como a caricatura de um colonizador alemão, depois de um francês, enquanto seu terno amarelo exibe padrões visuais que remetem à África. Essa multiplicidade de signos – os atores e seus figurinos-escrituras, as projeções fotográficas, a música – diz de uma polifonia visual e sonora complexa e estimulante, ao mesmo tempo em que o tom coloquial do relato, o cenário minimalista e a meia-luz mantida no teatro instauram um clima de despojamento e acolhida. Herança será, sempre, um emaranhado altamente desafiador de estímulos vibrando na máxima potência e, no mesmo movimento e sem contradição, um prazeroso e lúdico jogo de partilha sincera de uma história individual e coletiva.
A biografia familiar de Tizumba (mas também de Pererê), marcada pela violência e pelo desterro, mas também pela invenção de tecnologias de sobrevivência e pela transmutação do cotidiano em arte, é a matéria-prima do espetáculo. Mas ela se desdobra não numa narrativa linear – que tenderia ao reconhecimento, à catarse, à reconciliação total entre palco e plateia –, mas numa miríade de fragmentos narrativos que alimentam uma máquina ficcional imparável, que encontra sempre um desvio novo em relação ao que se espera. As histórias contadas não pertencem necessariamente a quem as conta, num troca-passo contínuo que desloca as noções de pertencimento e de identidade dos personagens, ao mesmo tempo em que afirmam um laço mais amplo e coletivo, que diz respeito à diáspora africana. Herdar, aqui, significa o contrário daquele verbo a que estamos acostumados quando invocamos essa palavra para designar a perpetuação hereditária dos privilégios econômicos. A herança aqui é de ninguém e de todos, desfaz a propriedade privada porque é imprópria, circula ao invés de encastelar-se numa linha sucessória de manutenção da desigualdade. Por isso é que cada ator assume a função ora de narrador, ora de coro, sempre num enlace surpreendente entre a voz, os movimentos de corpo e os instrumentos musicais. Júlia desenha partituras corporais em desarmonia com a voz. Maurício incorpora vários personagens. Pererê narra enquanto toca percussão, mas o ritmo do instrumento é sempre dissonante em relação à melodia do monólogo, de maneira que o percebemos como uma espécie de interferência disruptiva, numa tradução para a linguagem teatral daquilo que a música afrodiaspórica moderna inventou tantas vezes ao redor do mundo.
Foto: Pablo Bernardo
A dramaturgia – assinada por Grace, Aline Vila Real e Tomás Sarquis – força os multiartistas no palco a se engajarem em tarefas cênicas estimulantes, que têm o frescor de uma vibração encontrada agora, enquanto realiza um esforço consciente e deliberado de evitar a todo custo o lugar comum. Tizumba quase não toca tambor. Não há canções entoadas em uníssono. Há, inclusive, dois momentos deliciosos em que a melodia do refrão da famosa canção “Costura da vida” de Pererê aparece brevemente, em assovio ou ao piano, mas nunca escutaremos a canção inteira. Esse gesto de recusa do esperado é fundamental para a economia cênica de Herança. Num dos momentos mais marcantes, Pererê narra uma história de violência, mas ao invés de transformá-la em testemunho restaurador ou em repetição da desgraça, move-se pelo teatro inteiro enquanto a voz começa a falhar, interrompendo o relato, ao qual nunca teremos acesso por completo. Onde queres reprise do trauma, sou gagueira, parece dizer o espetáculo, enquanto inventa uma forma de violência cênica muito mais poderosa do que qualquer narrativa inteiriça.
Uma das imagens mais deslumbrantes se dá quando, na tela ao fundo, uma fotografia de um tio morto ainda jovem, vítima da doença de Chagas, ganha uma intervenção de um traço vermelho a sair-lhe pelo nariz, e logo esse sangue se transforma em fita vermelha estendida por um ator de um lado a outro do palco, para depois se multiplicar espetacularmente em fitas enormes que caem do teto do teatro. Essa imagem poderosa, que é ao mesmo tempo o lembrete do sangue derramado e o signo da costura de um laço (a máquina de costura, aliás, será um objeto narrativo e cênico fundamental), é um dos emblemas de Herança. Essa obra fragmentária, disruptiva, opera constantemente por cortes, mas sua fisionomia, surpreendentemente, não é a de uma linha partida, e sim a de um círculo que insiste em se fazer a despeito das interrupções. A recusa ao esperado é, no fundo, generosidade extrema com o espectador. A dissonância é um outro nome da harmonia.
Foto: Pablo Bernardo
Herança não rima com passadismo nem com nostalgia. Herança é o fio desencapado que resulta desse curto-circuito incendiário entre campos aparentemente díspares – a música afro-mineira de Tizumba e Sérgio Pererê de um lado, o teatro de vanguarda de Grace Passô do outro –, mas que na verdade se encontram numa obra harmonicamente dissonante. Aquilo que retorna ao final – a máquina de costura, o trono perdido do rei Bamum encontrado num museu em Berlim, a percussão contagiante reencontrada finalmente – é o índice de uma volta completa do trajeto sobre si mesmo. É como se Herança precisasse esburacar a linguagem do teatro musical para, ao fim e ao cabo, fazer a melhor homenagem possível à potência da música popular de matriz africana. Afinal, a polirritmia, a síncope, a dissonância, todas essas figuras modernas já estavam lá, impregnadas e indissociáveis, ainda que só viessem a se materializar para nós depois. O que Tizumba e os seus herdaram não está no passado, mas no futuro. A África ancestral sempre foi o futuro. E a música popular sempre soube disso.
FICHA TÉCNICA
Realização: Cia Burlantins e Napele Produções Artísticas
Idealização: Pedro Kalil
Elenco: Júlia Tizumba, Sérgio Pererê e Mauricio Tizumba
Participação especial: Rosa Moreira
Direção: Grace Passô
Dramaturgia: Aline Vila Real, Grace Passô e Tomás Sarquis / Elaborada a partir de narrativas produzidas por Júlia Tizumba, Mauricio Tizumba, Rosa Moreira e Sérgio Pererê
Direção musical: Sérgio Pererê
Músicas: Sérgio Pererê e Mauricio Tizumba
Assistência de movimento: Sérgio Penna
Vídeo arte: Renato Pascoal
Intervenções visuais: Desali
Projeções: Vj Bah
Cenário e figurino: Alexandre Tavera
Iluminação: Edmar Pinto
Sonorização: Cahuê Teixeira e André Cabelo
Gestão e produção executiva: Elias Gibran e Karú Torres (Napele Produções Artísticas)
Assistente de produção: Eurídes Máximo (Juninho)
Design: Mariana Misk (OESTE)
Fotos: Pablo Bernardo
Redes sociais: Jéssica Soares
Assessoria de imprensa: Luz Comunicação – Jozane Faleiro
Administrativo: Ângelo Batista e Silvia Batista
Alimentação: Cantina da Tia Rosa
Transporte: Luigi Andersom (Hermanos Transportes)