:::Por Soraya Belusi:::
Pensar a performatividade como uma das marcas que a teatralidade contemporânea apresenta é algo que acontece naturalmente na fruição de “Hamlet: Solo”, espetáculo do Coletivo Soul, apresentado na programação do X Festival de Teatro de Fortaleza. O trabalho integra uma trilogia que se debruça a investigar, a partir de fontes textuais e recortes distintos, o personagem shakespeariano que, nesta montagem, torna-se não só o protagonista, mas o filtro pelo qual a história é contada, assumindo a faceta de narrador de sua própria tragédia e de espectador de sua própria solidão.
Hamlet é apresentado, desde o início, como um ser em embate com sua própria mente e emoções, nu em uma banheira de água, jorrando o texto de Shakespeare como um fluxo de consciência, um movimento interior do personagem. Os outros personagens surgem em cena como fruto de seus pensamentos, “fantasmas” a lhe rodear, como se não fizessem parte daquela realidade narrada. São sombras, rostos cobertos com véus. O desequilíbrio com o qual Hamlet se apresenta na fala assume uma materialidade espacial com os corpos dos outros performers, em uma dança frenética com os figurinos que cortam o ar. É como se tudo saísse de Hamlet e para ele confluísse, tornando notável a percepção de solo que o título sugere: o embate de Hamlet é com ele mesmo, com sua solidão e sua tristeza crescente.
Embora mantenha grande parte do texto do bardo inglês, o Coletivo Soul opta por escrever-narrar-apresentar sua própria versão da obra, com fortes tintas de performatividade. A noção dramática que carrega o texto original abre espaço à simultaneidade de cenas, espaços e tempos, assim como a noção de personagem é substituída pela do performer, que não representa seu personagem e, sim, o apresenta. Essa opção ganha ainda mais potência à medida que Hamlet apresenta-se de forma mais dramática, enquanto os outros performers brincam com os outros entes da obra, fazendo cada um deles mais de dois ou três personagens diferentes. Espaços e tempos se cruzam em cena, criando um jogo no qual Hamlet narra, reflete e observa os fatos que se desenrolam à sua frente.
A palavra cede espaço ao corpo. Muitas vezes, a fala dos personagens, os diálogos originais, assumem uma faceta corporal, tornando-se ação, como acontece, por exemplo, no embate do fantasma do pai de Hamlet que se duela com o chão, em que se evidencia o conflito entre o mundo dos vivos e dos mortos e seu incômodo espiritual. O que estava expresso no texto, agora expressa-se no corpo. Outro elemento que é explorado no espetáculo é a música como narrativa e comentário, tendo cenas inteiras da obra do bardo inglês transformadas em espécies de canções-síntese.
A performatividade da obra parece estar ligada ainda à sua própria gênese, no sentido de que a coletividade é ressaltada em detrimento da unidade. Uma miscelânea de referências e jogos se estabelecem de forma a criar uma obra heterogênea, composta, ao menos no que aparenta seu resultado, pela justaposição das partes e não da harmonia.
A interrupção permanente da fábula é outro princípio retomado no espetáculo, de modo a enfatizar o caráter artificial e teatral da realidade criada diante do público, o que se reforça ainda mais ao se deixar à mostra do espectador a técnica do espetáculo e também com as intervenções do diretor. O elemento metateatral, aliás, é parte da própria obra de Shakespeare, mas é aqui ressaltado, em alguns momentos, em excesso, perdendo sua própria força ao longo das intervenções.
“Hamlet: Solo” é composto como uma colagem, em que partes disformes se juntam a outras criando um corpo singular. O desejo da autoralidade na criação de uma obra teatral se evidencia neste trabalho como uma potência, à medida que reúne uma série de boas ideias e soluções cênicas, mas também, às vezes, como redundância, à medida que estas mesmas boas ideias são utilizadas até a exaustão.
Tornar suas as palavras, insiste o diretor Thiago Arrais em um dos momentos que intervém na cena. É este movimento que parece nortear a investigação do Coletivo Soul neste mergulho sobre Hamlet, construindo um solo formado por muitas vozes.