– por Amilton de Azevedo* –
são paulo, meados de abril de 2020
als,
o cabeçalho marca um tempo-espaço que parece significar pouco onde seguimos existindo. recebi sua carta logo após a janta de hoje. agora, no silêncio da madrugada, me preocupo com as tosses que sigo ouvindo da vizinha de baixo – pelo que sei, é uma médica que vive só. de dia me preocupo com o insistente movimento de crianças jovens adultos velhos cachorros e as atletas de arremesso de martelo que treinam na quadra da praça.
eu moro com minha mãe, que brinca que meu quarto é uma casa na árvore. são duas; a folha do coqueiro, vi hoje, é uma ponte para as formigas que moram na minha parede. brinquei um pouco com isso durante a tarde, tornando o trabalho das pequenas mais difícil ou mais fácil. a outra é uma que dá flores amarelas; elas passaram a altura do meu quarto andar nos últimos 15 anos que moramos aqui. a vizinha tosse enquanto escrevo.
hesitei em escrever essa resposta. passeei por horas pelos rodapés. o primeiro me assustou um pouco; não estou lidando bem com essa efervescência de obras disponíveis – por um lado me sinto como quando passeio pelo catálogo do netflix sem saber a que assistir. por outro, não quero ver nenhuma delas. acho que também não me conformo com essas tentativas.
o segundo é o motivo primeiro disso aqui: sua carta e o preâmbulo finalmente me mobilizaram para olhar além. ler o que outras, outros, outres vêm dizendo pensando projetando. a isso, sou grato. não li todos os textos (e fui atrás de yuval harari, ailton krenak e debora diniz) mas algo me movimentou.
sabe, anda difícil pensar em presença. em encontro; em construir campos de possíveis, imaginar juntos. minha mãe uma vez me disse que um livro é o menos material dos objetos. penso que talvez uma carta, o ato de endereçar uma escrita para alguém – mesmo que indefinido, mesmo que inventado, mesmo que – é uma presentificação honesta daquelas palavras-tentativas.
organizar pensamentos ações em um texto é uma afirmação de existência, talvez? pode ser um escamotear, um fugir do agora. infelizmente, não escrevi essas palavras com um apagável lápis antes de traduzir o que se passou por aqui dentro nesta carta. mas minha insistência em seguir escrevendo enquanto escrevo e a escolha por não voltar ao já escrito antes de enviar talvez possam ser esta declaração de efemeridade, de incerteza; uma celebração (péssima palavra para o momento) do fugaz.
pois nessa suspensão de tudo o vagão segue em movimento assim como a vida;
o que quer que ela signifique agora. ela deveria ser uma unanimidade
mas pensar assim parece cada vez mais… otimismo, esperança, ingenuidade?
o mundo é enorme e a vida nunca vai caber na virtualidade exigida por estes tempos. ainda assim, seguir. tentar. da última vez que fui ao mercado, quando voltava pela rua do meio, uma senhora sorriu para mim da janela. eu retribui, mas a máscara não permitiu que ela notasse.
com a licença de quem se entendeu como um dos tantos vocês possíveis,
e com cariñho,
—
amilton de azevedo
* amilton de azevedo é mestre em artes da cena pela Escola Superior de Artes Célia Helena. professor e crítico teatral, criou em 2017 a plataforma ruína acesa.
Foto de Amilton de Azevedo.
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