por Luciana Romagnolli
Perguntas à atriz Yara de Novaes e à diretora Grace Passô sobre o espetáculo Contrações:
Gostaria que comentassem a escolha do Grupo 3 por encenar esse texto do Mark Bartlett, neste momento, e sobre quais qualidades dele como dramaturgo lhes interessaram.
Grace Passô – O Grupo3 tem interesse na obra de Mike Bartlett já há algum tempo e me propuseram este trabalho que é “Contrações”. Não conhecia o autor e me interessou seu olhar desumano do capitalismo nas relações do trabalho: o poder da máquina que atropela indivíduos em prol de uma determinada noção de competência e crescimento. Também vi nele a possibilidade de mais uma vez trabalhar um texto absurdo, fato que vem me interessando já há algum tempo.
Yara de Novaes – O Grupo 3, desde que se formou, realiza montagens de textos que têm como tema central as relações de dominação. Nas outras três montagens, essas relações tinham como território o ambiente doméstico, as famílias, os casais. Com Contrações, esse tema se estende para o ambiente de trabalho e gera discussões mais abrangentes sobre essa questão, reflete aspectos políticos, econômicos e filosóficos. Além disso, apesar de Mike Bartlett parecer herdeiro do pensamento orweliano, ultrapassa-o e reflete agora sobre o sistema escravagista operado pelo capitalismo, explicitando suas técnicas de manipulação, algo muito presente e contemporâneo. O que nos interessou também , para além do tema, foi que o autor tem musculatura dramatúrgica para associar essa temática aos elementos essenciais do teatro que gostamos de fazer, como personagens, ritmo, ação poética e dramática, extrapolação da realidade, etc.
O tema das relações de trabalho visto sob ótica do absurdo curiosamente ganhou versão nos palcos também em A Arte e a Maneira de Pedir Aumento ao seu Chefe, do Nanini. Vocês diriam que estamos com a sensibilidade aguçada para criticar os encaminhamentos que a lógica do trabalho tem tomado? E o absurdo, uma linguagem não tão comum nos palcos brasileiros, seria mais revelador nesse caso? Por quê?
Yara – Sim, estamos vivendo um momento no mundo em que o emprego está acabando e o trabalho precisa ser encarado de outra forma. E, infelizmente, os que ainda estão empregados, acreditam que aquele emprego é a sua única chance de trabalhar, sobreviver, ter boas e valiosas coisas e abrem mão de seus valores mais essenciais em prol dessa (des)crença. Acho que o absurdo propicia uma certa cisão emocional entre o público e a cena, o que fortalece a carga política e crítica do espetáculo. Para os artistas envolvidos, ter um texto em que a realidade é apenas um ponto de partida deixa-os mais livres, dispostos para interpretações, analogias e metáforas próprias.
Grace – É difícil tratar deste tema. Num primeiro momento ele parece asséptico e excessivamente distante da vida que, inclusive, artistas escolhem pra si (nós, no caso). Mas acho que, em Contrações, o texto escancara uma relação absurda que pode estar em qualquer lugar: grandes corporações ou não. Acho que o interesse por esse tema é claro: o mundo está explodindo com sua lógica do capital, suas contradições são mais absurdas ainda que o texto de Bartlett.
Chama a atenção o modo as personagens se constroem em oposição uma à outra – Yara fixa e inabalável, em contraponto às mudanças cíclicas de Débora Falabella e ao corpo dela que vai se deteriorando. Como foi o trabalho para definir as ações e o corpo dessas personagens?
Grace – As ideias do texto são muito claras e a ação primordial do texto de Bartlett é a palavra. Não à toa, sua primeira versão foi escrita para rádio. Pra mim sempre ficou muito claro que aquelas personagens e suas diferenças de conduta estão a serviço de uma visão de mundo. Mais que personagens, trabalhamos o jogo de contrastes entre o queYara e Débora deveriam representar nos momentos da peça. É como se as duas personagens concretizassem dois lados de conduta de cada uma delas porque seus desejos não interessam ali. Interessa o quanto são, as duas, capazes de abrir mão deles.
Yara – A Grace Passô é uma artista muito instigante e aberta. Como diretora, fez uma condução minuciosa e consciente do espetáculo e do trabalho dos atores. E em pleno diálogo com as personagens percebeu a natureza que cada uma delas. E é muito evidente que a transeunte na cena é a personagem de Ema, interpretada por Débora Falabella, enquanto que a Gerente, personagem que interpreto, tem sua ação baseada na palavra manipuladora e decretada. Visto isso, com a ajuda da preparadora física Kênia Dias, fomos compondo cada uma delas, com partituras físicas muito bem definidas.
A metáfora do frio se concretiza no uso do ar-condicionado, que faz o espectador experimentar fisicamente, no tato, algo que é elaborado nos planos visual e mental. Esse é um recurso que já usou em outros espetáculos – penso nos soterrados que agarram os pés de espectadores em Ancestrais. A partir disso, pergunto à Grace: em Contrações -e em sua obra mais amplamente -, como pensa o lugar do espectador e a relação de convívio que se estabelece (é negociada) com ele?
Grace – Acho que alguns efeitos numa encenação ajudam uma obra teatral absurda sair do plano da imaginação e concretizar-se como algo que acontece no mesmo tempo da ação teatral. Em Contrações, o “frio” tem essa função. Exercitamos uma qualidade sintética na atuação e encenação como uma forma de sermos escutados, em Contrações as palavras dançam, os corpos sustentam e tentam sustentar suas existências fixas no mundo. Acho que essa foi, digamos, a estratégia primordial pra relação com o público: evocar a escuta.