Fotos de Navalha na Carne Negra: Humberto Araujo.
Crítica escrita com as peças “Gota D’Água {Preta}” e “Navalha na Carne Negra”, dirigidas respectivamente por Jé Oliveira e José Fernando Azevedo.
– por Luciana Romagnolli –
Os tempos são outros. Por mais retrocessos que as políticas reacionárias nos imponham, avançamos, avançaremos. Nestes tempos outros, abertos os ouvidos e os olhos para as relações de opressão, encontramos em textos canônicos da dramaturgia ocidental questões atemporais e algumas anacronias. Diante da aceleração das discussões étnico-raciais e de gênero na última década, propulsionada pelo acesso de populações historicamente excluídas às universidades e aos canais de comunicação, há todo um movimento de revisão crítica por ser feito.
“Navalha na Carne Negra” e “Gota d’Água {Preta}” expõem em seus títulos, com muita nitidez, qual o gesto artístico-crítico fundante dessas versões. Não são trabalhos de obediência a uma tradição, pelo contrário. Eles se propõem a rever o cânone sem ignorar ou recusar o passado, mas também sem reverenciá-lo, reconhecendo a perspectiva que não estava contemplada nas obras de Plínio Marcos e de Chico Buarque com Paulo Pontes: a negritude.
Ambos são textos dos mais importantes da história da dramaturgia brasileira. Mas esta é uma afirmação derivada de um cânone que, assim como a maior parte dos dramaturgos, diretores, pesquisadores e críticos, obedece a uma matriz europeia, branca. Por mais que sejam trabalhos que tratem de periferia e das margens sociais do capitalismo, denunciando questões de classe, eles não têm a mesma sagacidade em abordar a estruturação racista da sociedade ocidental e seu capitalismo colonialista.
Então, o“simples” gesto de corporificar os diálogos com artistas negros é um movimento imenso de reparação de uma invisibilidade, que reconhece, enfim, que esses textos sempre falaram de uma população majoritariamente negra, mas que nos acostumamos a ver representada cenicamente por artistas brancos. É um movimento de reparação independente das outras operações que se processem nessas dramaturgias.
Fotos de Gota D’Água {Preta}.
Em“Gota D’água {Preta}”, isso fica explícito na opção por enegrecer o elenco e manter o texto original de Chico e Paulo Pontes, que adapta a “Medeia” da Grécia de Eurípedes para a periferia brasileira dos anos 1970, como prova de que não era preciso transformar personagens, história ou contexto para que coubesse nas vivências pretas. Em especial, porque a exploração do trabalho e da propriedade se torna uma forma de endividamento/aprisionamento da população pobre que perpetua a lógica escravista no capitalismo por outros processos, como os juros, e submete direitos fundamentais, tal qual o da moradia, aos interesses dos poucos donos dos meios de produção e das propriedades privadas.
No texto de Chico e Pontes, essa perspectiva de classe sobressai ao mito de Medeia e a repontua: ela se torna essa mulher de quem já se tirou tudo – e qualquer desilusão pode ser a gota d’água.
A frustração que vem é a amorosa, por obra de um Jasão (Jé Oliveira) seduzido por uma mulher mais nova, mas ainda mais pela boa-vida oferecida por um capitalismo midiático, sustentado pelas engrenagens da indústria cultural como fábrica de ídolos– assim como em “Roda Viva”, também de Chico. Jasão é o sambista que alcança a visibilidade e o conforto negados aos de sua classe e cor, e faz-se justamente o tipo de exceção que por décadas justificou discursos (racistas) de que, por haver celebridades negras nas artes e no futebol, não haveria racismo no país. O processo de embranquecimento sofrido por Jasão para se manter nesse posto de exceção faz com que ele se volte contra a própria população vizinha com a qual convivia, partilhava afetos e problemas. Ele adota a perspectiva e os privilégios do detentor dos meios, do patrão, para lucrar como ele, reproduzindo a opressão.
Portanto, quando “Gota D’Água” ganha a cor {Preta}, passa a dizer não só da perspectiva econômica, mas a compreender a complexidade da estruturação racista da nossa sociedade. Uma das maiores forças do trabalho está nessa manobra, feita pelo dramaturgo e diretor Jé de Oliveira. Ao mesmo tempo, ele traz para a cena elementos musicais muito potentes já vistos em “Farinha com Açúcar – Sobre a sustança de meninos e homens”, seu trabalho anterior à frente do Coletivo Negro.
“Farinha com Açúcar” é um trabalho que potencializa a palavra na oralidade, na musicalidade e na teatralidade, recorrendo a elementos da tradição e da atualidade da arte afro-diaspórica no Brasil, com centralidade para a música preta periférica, combativa cortante e poética dos Racionais MC a estruturar uma dramaturgia que se apresenta em relação intensa com o público.
Em“Gota….” essa contundência sonora e discursiva reaparece como comentário, sobrepondo uma camada dramatúrgica à representação mais convencional de um drama musical. As texturas sonoras entram como intromissões, intervenções em áudio que atritam com o cancioneiro de Chico Buarque, recompondo um diálogo musical de matrizes europeia e africana, elitista e popular, em que músicas “discutem” entre si. O rap arranha a MPB, expõe suas fissuras, suas fragilidades, mostra-se mais afiado. Temos aí um gesto artístico disruptivo, que respeita a crítica política da obra do Chico mas a confronta com seus limites e a leva além.
Outras intervenções dramatúrgicas vêm na boca de Jasão e do sogro. São falas reconhecíveis por terem sido proferidas por integrantes do governo Bolsonaro, que demarcam qual é a correspondência ideológica daqueles personagens no cenário político de hoje. Bastante frequente no teatro de nossos dias, a colagem de fragmentos de imagens e discursos políticos guarda um parentesco com o teatro de revista, no sentido de revisar os acontecimentos recentes por uma perspectiva crítica e debochada, ao mesmo tempo em que ecoa um tipo de enunciação de apelo ligeiro de que as redes sociais já estão saturadas.
De todo modo, essa atualização política da dramaturgia nos faz perguntar: se não há fidelidade absoluta ao texto original, por que não um gesto dramatúrgico mais contundente? Afinal, “Gota D’Água {Preta}” é uma versão de “Gota D’Água” que é uma releitura de “Medeia”. Essas três camadas de leituras estão sobrepostas, não se trata de uma tragédia inédita aos olhos do público, embora o encadeamento das cenas obedeça uma cadência cronológica que se demora nas minúcias da história.
Como efeito, a tragédia de Joana (Medeia) fica à margem da tragédia de Jasão. Tal como é desapropriada da casa por dever promissórias ao novo sogro de ex-companheiro, ela é desapropriada de protagonizar sua própria dor.
Por mais que Juçara Marçal seja uma artista capaz de colocar densidade na fala e no olhar, quando a ouvimos cantar vislumbramos uma Medeia que não encontra lugar de explodir em cena, reduzida a ser falada por outros e a reagir aos outros. O ponto delicado é que Joana reage às violências perpetuando uma visão patriarcal de gênero.
Aos ouvidos atentos e críticos de uma plateia como a que estava no FAN – Festival de Arte Negra, alguns diálogos machistas receberam reações imediatas. Mas há uma questão maior a ser enfrentada: faz falta que a revolta de Joana seja repensada, pois sua insubmissão, convertida no assassinato dos dois filhos, ainda é uma manifestação de dependência absoluta a um homem.
Numa perspectiva feminista, Medeia pode(ria) ser esta que se livra do peso da maternidade e da feminilidade, esta que se insurge contra a opressão masculina, esta que se vê aprisionada na dependência financeira e emocional e se rebela contra o destino da mulher na família patriarcal. Como a Medeia criada por Grace Passô, que enfrenta Jasão, não rivaliza com outras mulheres e insufla os filhos: “Mata teu pai”.
Mesmo com a força das mulheres negras em cena – estas que são a base social e da crítica interseccional antirracista e antimisógina –, em “Gota D’Água {Preta}”as estruturas patriarcais não são questionadas a fundo, nem a dependência emocional do casamento, nem a rivalidade entre mulheres, nem as piadas de cunho sexista. Uma vez que se saiba inadmissível rir do racismo, por que rir do machismo ainda é admissível?
Por toda qualidade crítica da abordagem em relação às questões econômicas e raciais é que a peça ainda precisa enfrentar a questão de gênero, na raiz da intersecção entre as formas de opressões, e rever a perpetuação de modelos de masculinidade e feminilidade violentos.
Fotos de Navalha na Carne Negra.
Reenquadrar no feminino
Essa falta de um atravessamento crítico de gênero fica mais evidente quando a própria dramaturgia do FAN coloca lado a lado o espetáculo “Navalha na Carne Negra”. Tal como em “Gota…”, o elenco composto de artistas negros ocupa com seus corpos espaços simbólicos que já lhes pertenciam, mas dos quais a tradição teatral branca os mantinha apartados, e acrescenta uma perspectiva racializada à de classe e à de gênero presentes no texto de Plínio Marcos.
À parte ser um dos dramaturgos mais importantes da história do teatro brasileiro {branco}, “Navalha…” tem um foco tão cru na violência entre sujeitos marginalizados que, em alguns momentos, aproxima-se de um gozo dessa violência. A direção de José Fernando Azevedo parece ciente desse risco e disposta a atravessá-lo.
Na peça, temos três figuras com papéis sociais bastante definidos: Vado (Rodrigo dos Santos), o homem hétero cafetão, explorador do trabalho sexual de uma mulher; essa mulher, Neusa Sueli (Lucelia Sergio), que vende o sexo para sobreviver e para sustentar esse homem em uma relação de submissão financeiro-afetiva; e Veludo (Raphael Garcia), também trabalhadora do sexo, mas fora do jogo da heterossexualidade e da masculinidade hegemônica.
A relação entre eles é de muita agressão física, verbal, emocional e sexual, sobretudo praticada pelo homem hétero, mas também na rivalidade entre a mulher e a bicha. Tanto aqui como em “Gota…” aparecem diálogos em que a violência contra a mulher se dá por humilhações sobre sua aparência e idade como fatores que a desumanizam. Em“Navalha…”, entretanto, os gestos de direção são determinantes para que se abram outras camadas de leitura além da que Plínio Marcos propõe.
Um deles é a presença constante de uma mulher com uma câmera de filmagem no palco. Notemos que são dois corpos a mais: a mulher e a câmera. Não há mais somente o male gaze de Plínio Marcos e José Fernando. Além disso, ela também tira de Neusa o lugar de única representação do feminino – existe uma mulher ali que não é objetificada no trabalho sexual – e inaugura outro imaginário: a mulher que detém a câmera, enquadra e determina a narrativa visual que será projetada em preto e branco em duas televisões ao fundo da cena.
A câmera é um instrumento contraditório. A tecnologia de enquadrar, selecionando o visível (e o invisível) tem uma violência intrínseca, que aqui muda de mãos, contrapondo a invisibilização histórica da população negra.
Ao mesmo tempo, quando já de início a imagem de Vado/Rodrigo é projetada em duas telas, é possível traçar uma referência direta à “Julia” de Christiane Jatahy, na qual o mesmo ator é filmado ao vivo em um cenário com dois telões. Trata-se de um trabalho que também atualiza um texto canônico (de August Strindberg) explicitando a opressão de classe e a subjugação de gênero e que se tornou referência no teatro contemporâneo em relação com o audiovisual, transformando Jatahy em uma das (poucas) diretoras brasileiras reconhecidas internacionalmente.
A diferença maior está não no tamanho das telas, mas na opção por imagens em preto e branco. Abrem-se possibilidades de leituras simbólicas sobre os limites dos enquadramentos, a estetização das imagens e a simplificação das cores, mas também a evidenciação das nuances, em contraste com o que vemos em carne e osso. Dizem da potência e dos limites de olhar o mundo por lentes específicas.
A câmera permite ainda um jogo de consciência dos atores que sobrepõe outra camada de compreensão e dignidade aos personagens, sobretudo Veludo (Neusa não tem essa lucidez sobre a opressão de gênero, por isso a importância do contraponto da outra mulher que olha para ela pela câmera). A forma cúmplice, perspicaz, irônica, autoconsciente como ele/ela olha para a lente é o contraponto às humilhações sofridas. Tensiona a afetividade masculina obliterada pela imposição da virilidade e desestabiliza a violência heternormativa.
Outra operação de direção muito interessante é a edição explícita das cenas não somente em vídeo, mas no ao vivo. Sequências mais agressivas, que se encaminhem para uma violência física e verbal sustentada nas opressões, são interrompidas em momentos cruciais e depois retomadas alguns momentos antes do ponto de corte para serem refeitas de outra forma. Esse movimento de interrupção, corte, retomada, revisão, re-ação, chama a atenção para o modo como se faz, se encena e se corporifica, para as imagens que se produz, para os discursos que ganham voz, situando a camada crítica como parte constituinte da obra.
Por fim, o terceiro gesto e mais definitivo, como se negritasse as operações anteriores, criando um jogo de sombras e luzes sobre o texto de Plínio Marcos, é o epílogo. Quando a história se encerra, há uma retomada de cenas que acabamos de ver com uma edição muito marcante que faz com que três atores repassem fragmentos reencenando imagens mudas, significativas, que restabelece a possibilidade de afeto e respeito entre aquelas pessoas.
A imagem final que a câmera vai enquadrar é a bolsa da Neusa Sueli ao chão, aberta e vazia. A questão econômica reaparece como chave da dignidade humana, em um comentário visual que entendo como a denúncia derradeira do que, em última instância, acirra a violência daquelas relações – agindo, inclusive, sobre Vado.
Assim, a violência é exposta sem ser fixada nem se confiar a ela o prazer estético. Em vez disso, é desestabilizada pela proposição de uma imaginação além, desobediente, que responda artisticamente à opressão instituída.
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