– Por Diogo Horta –
* * * O Horizonte da Cena faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, ao lado das seguintes casas: Ruína Acesa, Guia OFF, Farofa Crítica, Cena Aberta, Tudo, menos uma crítica e Satisfeita, Yolanda?
Reflexões a partir do espetáculo “Disney Princesa” da Aventura Teatro, assistido no dia 02 de fevereiro de 2025 no Sesc Palladium.
O teatro pensado e produzido para as crianças é, ainda hoje, fortemente influenciado pelo universo dos contos de fadas, pela Disney e pela produção audiovisual. Em um mundo cada vez mais mediado pelas telas, a força de produção do cinema e todo o conjunto comercial associado a ela, como produtos, fantasias, etc. fazem com que tais obras tenham grande influência e impacto sobre o imaginário e desejo dos pequenos e de suas mães, pais e responsáveis. Diante desse cenário, meu objetivo com esse texto é levantar questões e trazer algumas pesquisas que correlacionam alguns desses elementos: teatro, infâncias e princesas.
O que se vê na criação teatral contemporânea para crianças, na maior parte das produções, pelo menos em Belo Horizonte, é uma tentativa de aproveitar uma fatia do sucesso já conquistado por filmes e histórias clássicas ao transpô-las para o teatro. Para se ter uma ideia, apenas na 50ª Campanha de Popularização do Teatro e da Dança, evento tradicionalmente realizado nos meses de janeiro e fevereiro em Belo Horizonte, dos 60 espetáculos para crianças da programação, aproximadamente 65% são de histórias inspiradas em contos de fadas ou adaptações do audiovisual (filmes de animação ou desenhos animados). Já há muitos anos essa é uma tendência no evento e pode-se inferir que o motivo para se apostar nesse tipo de espetáculo é que são produções tidas como mais rentáveis financeiramente para os artistas e produtores.
Há uma tendência econômica de universalização de produções culturais de adultos para o consumo infanto-juvenil (que depende do engajamento dos adultos que trabalham e compram os ingressos, os objetos, os brindes) como vemos, por exemplo, em musicais produzidos ao redor do mundo, elenco local e “qualidade total” checada, vigiada, modelada pela indústria cultural da Disney em seus super espetáculos musicais, remontados na lógica de verdadeiros franchisings fora dos Estados Unidos. É próprio do nosso tempo o consumo de produções adultas criadas para as crianças (MACHADO, 2020, p. 10 e 11).
Entendo que não devemos nos furtar ao pensamento sobre o consumo e rentabilidade no teatro, afinal, é preciso vender ingressos para que os artistas recebam seus cachês no final do mês. As leis do mercado e do consumo estão postas e não deixam a produção teatral passar ilesa. As crianças são apenas mais uma peça nesse quebra-cabeça e acabam, muitas vezes, vítimas de um conjunto de informações, por meio da publicidade pensada para o público infantil, que moldam aos poucos aquilo que é desejável comprar e usar (OLIVEIRA; COSTA, 2016).
Para Oliveira e Costa (2016, p. 16) é “esta intersecção entre a cultura e o material, como uma prática hegemônica, que se exige que se faça do mundo de representações da Disney um objeto de análise crítica”. Para as autoras, a prática e a influência da empresa, assim como a dimensão do consumo na sociedade atual, extrapolam o componente econômico e podem ser compreendidos como um fenômeno cultural e social.
Fotos de Caio Galucci
Nesse contexto, me parece pertinente trazer algumas reflexões sobre o espetáculo “Disney Princesa”, apresentado recentemente em Belo Horizonte. Trata-se, no Brasil, de uma montagem da Aventura Teatros e que apresenta vários números musicais com as principais canções que marcam os filmes da Disney. Apesar da ênfase nas princesas, o musical também tem canções de destaque para alguns personagens masculinos, assim como um número com as principais trilhas sonoras dos vilões dos filmes.
O espetáculo é conduzido por uma maestra madrinha (alusão à fada madrinha) e três outras princesas que interpretam as canções, mas não fazem parte de nenhum dos filmes e ou histórias conhecidas. Tal aspecto, embora possa decepcionar algumas crianças, me parece interessante, visto que apresenta personagens mais próximas da realidade atual e que se confundem com as histórias das atrizes que as representam. Ao mesmo tempo essas personagens brincam de interpretar suas princesas da Disney favoritas e comentam sobre os principais pontos de suas histórias que as inspiram.
A dramaturgia tenta valorizar nas Princesas mencionadas aspectos como coragem e determinação, deixando de lado aspectos como a fragilidade e desejo de encontrar o príncipe encantado. Mesmo assim, cabe refletir sobre a escolha do mote das princesas para um espetáculo para crianças. Embora seja uma tendência de muitos artistas e produtores, possivelmente focados nos benefícios financeiros da proposta, me parece importante, ao menos, levantar questões sobre essa decisão.
Por que as personagens princesas continuam fascinando as crianças, sobretudo as meninas? Como tais histórias e personagens ainda carregam alguma força de mobilização para o teatro? Os contos de fadas seriam uma espécie de iniciação facilitada para a experiência teatral? Por conta das telas, é ainda mais difícil para as crianças estarem no teatro hoje do que era há anos atrás? Quais estereótipos e marcas de gênero estão postas no universo das Princesas Disney? O que esse tipo de produção teatral produz e reflete da nossa sociedade?
Tenho muitas questões e poucas respostas. Entendo, no entanto, ser importante reunir aqui, mesmo que de forma breve, algumas pesquisas que tentaram compreender melhor esse universo e deixar as perguntas em aberto para que coletivos, produtores e/ou artistas possam responder, caso queiram, por meio de seu trabalho criativo como também possam gerar outras perguntas a partir dessas.
Escoura (2012), em pesquisa que buscou entender como as Princesas são lidas e significadas por crianças, observou como essas personagens são importante fonte de repertório de gênero na infância. Em uma extensa investigação sobre a relação entre crianças e princesas em três escolas distintas, a autora utilizou da própria proposta da Disney que divide as personagens femininas em “clássicas”, categoria na qual estaria Cinderela, e “rebeldes”, categoria da personagem Mulan, para traçar perfis e discussões com os alunos. A pesquisadora observa ainda a presença constante das princesas em vários objetos e brincadeiras do cotidiano escolar ressignificando e demarcando as dimensões do gênero nesse contexto.
Nos contornos estéticos daquilo que as crianças entendiam como uma princesa, referenciais de classe, de cor e geração eram acionados para a elaboração de um referencial de gênero: o destaque dado às coroas, joias, vestidos suntuosos, à beleza que se mostra branca e jovem e, ainda às performances corporais entendidas como elegantes, constituíam os critérios daquilo que uma pessoa precisa ter para poder ser. (ESCOURA, 2012, p. 152).
Para Xavier Filha (2011), em uma pesquisa realizada com crianças sobre o mesmo universo, não interessa fazer uma análise psicanalítica dos contos de fadas, mas compreender, no discurso das crianças, aquilo que influencia na percepção e construção da subjetividade masculina e feminina. Diante disso, a autora buscou verificar, em alguns grupos de crianças, a correlação entre as personagens princesas e as características femininas consideradas ideais por elas, observando os seguintes aspectos:
As características pessoais e comportamentais das princesas também foram demarcadas nas narrativas. As comuns (de meninos e meninas) indicavam que a princesa seria feliz, vaidosa, linda, bonita, simpática, legal, alegre; que adoraria animais e gostaria de ter um príncipe encantado. Os meninos também afirmaram que as princesas têm amigos/ as; são sorridentes e gostam de boneca, vestido e calça. As meninas, por sua vez, falaram de inúmeras outras condutas desejáveis para a princesa, tais como asseio, doçura, discrição, delicadeza, inteligência, fofura, meiguice, amabilidade; e algumas competências, como gostar de cozinhar, ser prendada, ser divertida, gostar da cor rosa, não ser gulosa e ficar à espera do príncipe encantado. (XAVIER FILHA, 2011, p. 594)
A partir de suas observações, Xavier Filha (2011, p. 601) questiona: “Como instigar a construção de novas formas de ser menino e menina? Como as crianças e os/as adolescentes podem questionar os vários discursos que prevalecem nas mais diversas pedagogias culturais?”.
Poderíamos acrescentar mais algumas perguntas: o que o teatro tem a ver com isso? Em que medida os espetáculos de teatro de princesas reforçam esses padrões? Sendo espaço de convívio e presença e uma linguagem artística que não se faz em larga escala, não poderia o teatro para crianças se fortalecer justamente no que o difere das telas? O que falta para que os pais, mães e responsáveis levem seus filhos para assistir algo diferente daquilo que já conhecem?
Do ponto de vista da encenação, “Disney Princesa” tem a experiência presencial quase esquecida em muitos momentos. Com um telão de LED enorme no fundo do palco que exibe as imagens dos filmes da Disney à medida em que as canções são interpretadas, é fácil para o espectador se hipnotizar por completo pelas imagens em vídeo e praticamente esquecer da presença e que estão em um teatro. O espetáculo estabelece um vai e vem do palco para a tela que nesse caso, ao contrário de experiências bem sucedidas que aliam essas duas linguagens em cena, acaba por minimizar a potência da cena. É como se não precisasse fazer muito em cena visto que já tinha a tela com os filmes para “ocupar espaço” e “chamar a atenção”.
Diante disso, observo que as pequenas cenas entre as canções tinham pouco a contribuir e acrescentar para a experiência teatral. Nas cenas durante as canções, as intérpretes faziam o mínimo, deixando o foco na tela com as imagens dos filmes. Assim, os poucos momentos em que a presença é efetivamente convocada se dá por meio de efeitos visuais que se conectam com a tela mas que extrapolam o palco e invadem a plateia como bolhas de sabão na canção da Ariel (A pequena Sereia) ou uma imitação de neve na música da Elsa (Frozen: uma aventura congelante).
É interessante perceber como as crianças se envolvem profundamente com a experiência presencial desses dois momentos, compartilham olhares e sorrisos fazendo valer o convívio proporcionado pelo teatro. Para Machado (2020, p. 12), o “pensamento sobre arte-e-vida sintoniza com o que Jorge Dubatti (2012) define como convívio: o teatro, em sua concepção, é arte convivial por excelência”. Dessa forma, o que deveria sobressair da experiência teatral é a vivência com o outro, com a comunidade reunida em torno de uma apresentação.
O ato de brincar com a bolha de sabão e a neve artificial pode não representar, necessariamente, o que Machado e Dubatti invocam como convívio, entretanto o que gostaria de ressaltar aqui é que esse ato convoca o espectador para um outro estado. É o saltar da poltrona, o abraçar a amiga que está do lado de tanta alegria e surpresa, o olhar de cumplicidade para a mãe que está ao lado que me remetem ao melhor que o teatro pode proporcionar para as crianças, uma vez que elas saem de uma posição de assistir algo (como fazem com os filmes) e passam a viver algo com os próprios corpos e com os demais indivíduos ao seu redor.
Para além desse aspecto, o espetáculo “Disney Princesa” reforça a linguagem audiovisual provocando uma redução do próprio motivo de existir do teatro. Isso parece acontecer pois a tela é um elemento forte e praticamente independente na encenação. Ao contrário de muitos espetáculos que fazem do jogo entre teatro e audiovisual uma força, nessa proposta os atores não se relacionam com o que é projetado, não há jogo e diálogo entre as linguagens. Diante disso, recorro a pesquisa de Machado (2020) que apresenta importantes contribuições para se pensar o fazer teatral para as infâncias hoje.
O teatro infantil encenado por adultos no Brasil possui, em sua tradição, um lastro caricaturizado por personagens crianças representadas pelos adultos, muito colorido e muita alegria; esqueceu da tristeza, recalcou o estranhamento, afastou-se da sensação de estrangeiro pela qual todas as crianças invariavelmente passam, com maior e menor intensidade, em diferentes momentos biográficos. Penso que negar a tristeza é desconsiderar a sacralidade do rito do teatro; produzir teatro alegrinho é minimizar a dor e a delícia de ser criança, e de ser recém-chegado no mundo – mundo velho, corrompido, e desejoso de bilheteria, patrocínio e edital: pouca pesquisa e muita concessão para agradar o curador (MACHADO, 2020, p. 17).
As provocações da pesquisadora apontam para a necessidade de uma reflexão profunda do teatro para crianças tanto do ponto de vista do tema, quanto da forma. É interessante observar como Machado (2014) opera uma distinção entre o teatro produzido por adultos para crianças e o que poderia ser um teatro produzido com e por crianças, enfatizando como os fazeres artísticos podem contribuir para pensar o modo de vida das crianças hoje e as diferentes infâncias. A própria pesquisadora contribui com algumas outras perguntas:
Como seria pensar a encenação para crianças na chave relacional? Como exercer pesquisa em artes cênicas e contemporaneidade incluindo as crianças como público pensante, como espectadores emancipados (RANCIÈRE, 2012)? Como pesquisar, instigar, exercer as antiestruturas para propiciar o surgimento de um teatro novo, sem ferir os princípios da infância e juventude hoje? (MACHADO, 2014, p. 11).
Diante desse cenário e com as perguntas já lançadas, penso ser importante concluir essa reflexão valorizando o trabalho daqueles produtores, grupos e artistas que já vem há alguns anos tentando responder pelo menos algumas dessas questões. Se, como mencionado anteriormente, 65% dos espetáculos para crianças da 50ª Campanha de Popularização do Teatro e da Dança estão na perspectiva das princesas, contos de fadas e adaptações audiovisuais, outros 35% estão buscando saídas e investigando formas diferentes de conectar o teatro com as infâncias atualmente.
Em Belo Horizonte, grupos como Insensata Cia. de Teatro, Grupo Maria Cutia, O Trem Companhia de Teatro, Grupo Armatrux, Cia. do Silêncio, Giramundo Teatro de Bonecos, Grupo Oriundo de Teatro, Grupo Trampulim, Cia. Bando, Coletivo Bufadas, entre outros artistas, se destacam com trabalhos que almejam mais do que repetir padrões. Desde que entrei para o Horizonte da Cena, em 2017, busco trazer a cena para crianças para os textos de crítica, explorando as potencialidades e valorizando esses diferentes caminhos. Ao final da minha primeira crítica, sobre o espetáculo “A festa do pijama” do Grupo Oriundo de Teatro, pergunto: “Ao invés de apostar em trazer ao teatro o que já foi sucesso no cinema infantil, que tal brincar de explorar novos caminhos?” (HORTA, 2024, p. 54).
É nítido que as perguntas que faço nesse texto não são novas. Em todas as críticas de espetáculos para crianças já escritas por mim, valorizo diferentes aspectos e contribuições que cada proposta apresenta para o teatro. Entendo que retorno em algumas questões novamente para tentar analisar o mesmo contexto pelo outro lado, pelo lado das grandes produções, dos contos de fadas, da Disney. Espero que, ao questionar esse tipo de produção, seja possível encontrar outros ecos e levantar discussões que o que foi escrito, até então, não conseguiu. Que as perguntas feitas aqui possam instigar e potencializar as novas criações para assim fortalecer o teatro produzido para crianças. Pode-se ainda, inclusive, transpor essa categoria “teatro para crianças” e se tornar apenas teatro, teatro para todas as idades, como almeja Machado (2020).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ESCOURA, Michele. Girando entre Princesas: performances e contornos de gênero em uma etnografia com crianças. São Paulo, 2012. 163 f. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-08012013-124856/publico/2012_MicheleEscouraBueno_VCorr.pdf. Acesso em: 6 fev. 2025.
XAVIER FILHA, C. Era uma vez uma princesa e um príncipe…: representações de gênero nas narrativas de crianças. Revista Estudos Feministas, v. 19, n. 2, p. 591–603, maio 2011. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2011000200019 Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/z5kp7sqRvrtmYJ4kgrCc8pt/abstract/?lang=pt Acesso em: 3 fev. 2025.
HORTA, Diogo. Mais que uma festa do pijama. In: DOMINGOS, Clóvis et al. (Org) Horizonte da Cena: uma década de crítica coletiva. 1. ed. Belo Horizonte: Letramento, 2024.
MACHADO, Marina Marcondes. TEATRO E INFÂNCIA, POSSÍVEIS MUNDOS DE VIDA (E MORTE). Revista Aspas, [S. l.], v. 4, n. 2, p. 3–14, 2014. DOI: 10.11606/issn.2238-3999.v4i2p3-14. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/aspas/article/view/85291. Acesso em: 3 fev. 2025.
MACHADO, Marina Marcondes. Vida ou morte para o teatro infantil? Contrapontos. Revista da FUNDARTE. Montenegro, p.01-20, ano 20, nº 42, julho/setembro de 2020. Disponível em: http://.seer.fundarte.rs.gov.br/index.php/RevistadaFundarte/index> 30 de setembro de 2020. Acesso em: 3 fev. 2025.
OLIVEIRA, Viviane. & COSTA, Maria. Quando os contos de fadas são transformados em espaço publicitário: um estudo sobre televisão, fadas e princesas com seus efeitos sobre a infância. Criança e Consumo. 2016. Disponível em: https://criancaeconsumo.org.br/biblioteca/quando-os-contos-de-fadas-sao-transformados-em-espaco-publicitario-um-estudo-sobre-televisao-fadas-e-princesas-com-seus-efeitos-sobre-a-infancia/ Acesso em: 3 fev. 2025.