Texto escrito a partir dos espetáculos Citações (solo de Bruna Chiaradia); Death Lay – na vida tem jeito pra tudo (solo de Anna Campos do Grupo Oriundo de Teatro); Querença (Breve Cia) e Bordados (Grupo Amok Teatro).
– por Marcos Antônio Alexandre (FALE-UFMG/CNPq) –
Espetáculos: Citações (foto de Flávio de Souza) e Death-Lay: na vida tem jeito pra tudo (foto de Guto Muniz)
2022 se presentifica como mais um ano de novos desafios em várias frentes, não só no campo sociopolítico, que ainda carece de mudanças estruturais potentes para que o país possa acertar de vez o seu caminho rumo a um verdadeiro encontro com a democracia e a preservação dos direitos humanos em todos os sentidos, mas, principalmente, em relação ao campo artístico, que, nos últimos tempos, vem sendo tão vilipendiado por declarações inapropriadas de parte dos políticos sobre o papel e a importância da cultura brasileira e de seus respectivos agentes culturais. São vetos a leis cruciais como a nova lei Aldir Blanc, interditada integralmente pelo “presidente” da nação, ocasionando uma grande baixa ao setor cultural. Não obstante, para além dessa situação tão grave e delicada, deparamo-nos a cada dia com trabalhos artísticos engajados, colocando em discussão diversas pautas contemporâneas, abrindo a possibilidade de reflexões sobre o nosso tempo.
2022 também é o ano em que os teatros voltaram a abrir as suas portas, permitindo que retornássemos às salas e espaços culturais para assistir novos trabalhos e/ou rever espetáculos que foram interrompidos prestes à estreia ou que estrearam, fizeram algumas apresentações e tiveram suas temporadas cancelas. Voltar ao teatro, suscita em mim um misto de emoções: nostalgia, empolgação, extrema felicidade e, ao mesmo tempo, o medo e receio de contaminação, visto que a covid -19 continua matando pessoas próximas e desconhecidas todos os dias. Depois de ficar dois anos assistindo espetáculos virtualmente, voltar ao espaço de representação, ao tempo do convívio, possibilita-me voltar a vivenciar a adrenalina da pré-apresentação; se o elenco, nas coxias se prepara para adentrar o palco, como espectador também me preparo para receber o que os grupos têm para me entregar com seus trabalhos, as novas possibilidades de recepção que nos apresentam, pois as expectativas são muitas, após tanto tempo de experiência apenas virtual, o espaço convival finalmente é algo concreto.
Tem sido muito proveitoso, nesses primeiros meses de 2022, poder retomar um de meus momentos de ócio mais produtivos – ir ao teatro. Este reencontro me possibilita que eu, simultaneamente, me divirta, mas, sobretudo, que eu vivencie o exercício de estabelecer novas leituras transversais propiciadas pelos diferentes espetáculos assistidos; trabalhos que tocam em pautas atualizadas e que, de diferentes maneiras, me fazem acionar lugares específicos de meus interesses teóricos e pessoais. Entre outros trabalhos, não poderia deixar de citar os espetáculos: Deus da Carnificina, da Cia da Farsa, texto de Yasmina Reza, com direção de Sérgio Abritta, apresentado na Sala João Ceschiatti e assistido no dia 19 de março; Pai, com atuação, concepção e dramaturgia de Glicério do Rosário, com direção e iluminação de Geraldo Octaviano, apresentado no Teatro Marília e assistido no dia 1º de maio; Experimento 1: Masculino, solo de Cristiano Diniz com cocriação da Sala de Giz, de Juiz de Fora, apresentado na Funarte e assistido no dia 13 de maio; e Um anjo, solo com atuação, direção e dramaturgia de Lenine Martins e com codireção de Ricardo Garcia, apresentado no Teatro da Cidade e assistido no dia 20 de maio. Todos, espetáculos muito potentes e que apresentam suas particularidades. Não obstante, em minha perspectiva analítica, os trabalhos retratam alguns pontos em comum, sobretudo por trazerem discussões fundantes sobre as relações humanas e, como consequência, todos propõem questões que levam os espectadores a terem contato com situações que ressonam aspectos voltados para as afetividades, as masculinidades tóxicas e as violências físicas, psicológicas e simbólicas.
Apesar dessas breves aproximações temáticas levantadas em relação às peças citadas, para esta reflexão, o meu exercício de criticidade se aguça no desejo de discorrer algumas reflexões sobre outras obras às quais também tive acesso nesse “novo ano” e que foram produzidos e/ou apresentados por mulheres, temática cada diz mais presente e com trabalhos extremamente potentes na cena belorizontina. São montagens em que a perspectiva feminina é a temática central e que trazem para cena uma diversidade de lugares de afetividades, identidades e subjetividades em que mulheres/atrizes movimentam suas corporeidades em função de questionar os espaços sociais aos quais são/estão subjugadas. O meu olhar crítico aqui objetiva apreciar cada proposta espetacular tentando falar com suas criadoras e atuantes. De forma alguma, o meu interesse é falar por elas e devo explicitar que não me sinto nunca em condições de falar por elas. O meu intuito é propor leituras a partir de como cada peça chegou a mim, de como fui afetado pelas pautas levadas às cenas.
As leituras são sempre leituras e, portanto, partem de referências prévias que nos movem como sujeitos. No meu caso, como crítico, tento isentar-me ao máximo do “objeto” analisado, mas confesso que não acredito muito nesta isenção e o que me interessa de fato é pontuar como sou movido pelo que vejo, pelo que experiencio no momento em que me coloco como leitor-espectador de um espetáculo.
Para as reflexões que se seguem, as peças que me moveram, me deslocaram, me descentraram de formas distintas e das quais eu gostaria de dividir algumas impressões são: Citações, solo de Bruna Chiaradia, dirigido por Gui Augusto, apresentado no Teatro João Ceschiatti, e assistido em 26 de março; Death Lay – na vida tem jeito pra tudo, solo de Anna Campos do Grupo Oriundo de Teatro, com dramaturgia e direção de Antonio Hildebrando, estreado no CCBB, também cumpriu temporada de um final de semana no Teatro Raul Belém Machado e assistido por mim no dia 22 de abril no CCBB; Querença, espetáculo da Breve Cia, com dramaturgia de Amora Tito, com as atrizes Anair Patrícia e Renata Paz em cena, apresentado no Galpão Cine Horto e assistido no dia 7 de maio; e Bordados, do grupo Amok Teatro, texto e direção de Ana Teixeira e Stephane Brodt, com o elenco formado pelas atrizes Carmen Frenzel, Adriana Rolin, Jacyan Castilho, Sandra Alencar, Vanessa Dias e Vania Santos, apresentado no CCBB e assistido no dia 8 de maio.
Citações. Foto: Fabiana Loyola
Em Citações, somos conduzidos para um emaranhado de mundo-citações da atriz Bruna Chiaradia e vamos sendo enredados por suas narrativas que nos movem para outros espaços. Numa instigante conversa com o público, a atriz-performer se apresenta em suas múltiplas facetas como mulher, atriz, feminista, artista preocupada com as questões de seu tempo: “Vocês não sabem o aperto que estou passando aqui”. É a afirmação/questionamento que a atriz se faz, ao segurar um cartaz no qual o espectador lê o seu nome, idade e altura. Para além dessa desta primeira aproximação com o público, com o ato de se identificar-se, a peça se propõe a vivenciar um rito cênico, um ritual de passagem com sua plateia. Na concepção da atriz a peça se configura como “ritual de despedida”, em que ela se “despede de seu ofício” convidando o espectador a ser copartícipe de suas cenas-rito. Chama a atenção como a atriz corporifica em cena o elo sagrado do rito para constituir um pacto com a plateia, envolvendo-a em suas narrativas que são costuradas colocando em xeque o ficcional e o factual. A partir de um recorte de textualidades diferentes – poesias, notícias, depoimentos pessoais – os espectadores são colocados em contato com as urgências pessoais e sociais que a atriz-performer traz para reflexão, amplificando seu olhar sobre pautas que a desnudam de diversas maneiras diante da mirada do público, sobre o seu fazer teatral – “o saldo atual do caixa deste projeto é de R$2.450,00 negativo” – e, sobretudo, apontando negligências de nosso tempo que insiste em invisibilizar pautas do universo feminino como afetividade, desejo, subjetividade, questionamentos identitários, ideológicos e sociopolíticos.
Death Lay – na vida tem jeito pra tudo. Foto: Guto Muniz
Com Death Lay – na vida tem jeito pra tudo, a atriz Anna Campos divide com seu público parte de sua história de vida. A partir de uma proposta de teatro documental é trazido para cena especificidades da vida da intérprete em relação a uma questão íntima, que diz respeito a um acidente que deixou sua mãe, Valéria Vieira, em coma. As memórias dos momentos vivenciados com a mãe perduram e continuam pulsando na corporeidade da artista, que, de forma catártica, divide com o público suas rememorações em narrativas outras que levam o espectador para experienciar com ela alguns momentos de respiro, principalmente nas cenas em que a atriz-personagem realiza no mastro do pole dance, instrumento do qual ela é expert e que, na cena, em alguns momentos, nos tira a tensão que envolve as ações dramáticas como um todo, ou quando dança com a boneca (criada por Eduardo Félix do Pigmaleão) que representa a mãe, outro momento que produz um instante de respiro diante dos fatos dolorosos que são abordados em cena.
“Quem tem, de fato, direito à morte?” O solo de Anna Campos nos traz esta reflexão e nos faz pensar no impensado, num assunto que a sociedade como um todo evita discutir, muitas vezes, por não sentir empatia com as dores do Outro. Em cena, as ações são descortinadas e debatidas sem meia palavras e isso causa no espectador momentos, pelo menos, se não de empatia, de um autoquestionamento. A plateia é estimulada a ver, enxergar e ouvir o que consciente ou inconscientemente hesita em confrontar e discutir, e o trabalho aborda tais questões a partir do contato com fotos, imagens em vídeos e alguns áudios; elementos cênicos que potencializam ainda mais a sensação de ausência-presença da mãe, corporificada e “ficcionalizada” na figura da boneca, isto é, um corpo-memória que não se esvai, que continua pulsando vida e morte. A corporeidade da atriz exprime em cena as várias facetas de si, como mulher, menina, filha, mãe, enfermeira, médica. Dividir-se e multiplicar-se em cena aqui, talvez, seja uma resposta para a atriz lidar com suas memórias enquanto sujeita de uma contemporaneidade, que não se sustenta em muitos aspectos.
Em Querença, as atrizes Anair Patrícia e Renata Paz trazem para cena particularidades das vivências de mulheres pretas, pauta extremamente relevante e ainda pouco encenada pelos teatros negros de nosso tempo. A peça nasce da cena “Uma, Outra”, que foi apresentada no Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto em 2021 e selecionada para ser desenvolvida como espetáculo. Se a cena original já trazia lampejos de um olhar engajado sobre algumas experiências e percursos que integram o cotidiano de mulheres negras, o espetáculo aprofunda ainda mais em questões que iluminam os corpos da negrura em cena. O corpo da mulher preta aqui, por meio dos corpos-presença das atrizes em cena, transcria linguagens e se mostram para além da invisibilidade e do silenciamento ao qual são socialmente subjugados.
Querença. Foto: Denise dos Santos
“As atrizes revezam as personagens. as personagens revezam suas histórias. as histórias revezam as atrizes. uma. outra. um bando de pássaras sobrevoa a cena. elas se juntam ao bando. Uma voa para longe. Outra fica.” A sinopse permite que visualizemos a proposta espetacular como um todo, mas ver as atrizes em cena emprestando seus corpos para discutir particularidades das afetividades femininas que, muitas vezes, não são discutidas quando as pautas se relacionam com a mulheres negras. Sim esses corpos podem falar de amor! Sim, esses corpos falam de si! Esses corpos – e corpas – podem e devem falar de todos os temas e pautas. Ver as atrizes dividindo e se multiplicando em cena como irmãs, filha/mãe, amantes, ficantes, como corpos desejantes e como corpos que se desejam, é um dos pontos fortes da performance delas; as quebras e rupturas nas passagens de uma persona para outra são muito bem resolvidas e colocam o espectador diante das multiplicidades de memórias rearticuladas. Montar e desmontar o cenário – uma mesa e duas cadeiras desmontáveis – para construir novas paisagens sensoriais e criar narrativas que vão sendo enredadas e que servem para desvelar nuances que se entrelaçam e fazem das personagens um duplo e um uno, indivisível.
Bordados. Foto: Divulgação do grupo
Bordados, do grupo Amok Teatro, me afetou em vários lugares, pois assim que cheguei ao teatro, no primeiro momento sem entender o porquê, me foi solicitado que ficasse num lado específico do espaço, que foi dividido em uma fila de homens, em sua grande maioria, e outra de mulheres. O estranhamento é logo desfeito quando somos convidados a entrar na sala de apresentação e a fila de mulheres adentra o espaço primeiro, para logo depois, entrarmos e observamos que as mulheres (cerca de vinte) foram alojadas em cadeiras próximas ao espaço de representação, onde as seis atrizes compartilharão com elas suas histórias num encontro seleto em que cada uma pode se servir de chá à vontade. Um chá só para mulheres, do qual o restante do público é excluído. Um encontro especial como uma confraria de mulheres a partir do qual histórias são contadas e vamos sendo postos em contato com parte da cultura mulçumana. Essa experiência, em realidade, trata-se de um exercício de alteridade, que nos obriga, como espectadores, principalmente os homens da plateia, a nos colocarmos em discussão e reflexão e, muitas vezes, as “narrativas” reproduzidas e encenadas pelas atrizes, memórias fabuladas por meio dos discursos das mulheres, nos colocam em posição de algozes e cúmplices de muitas ações que são rememoradas nas histórias.
Como espectador ávido por experimentar novas práticas de vivenciar a arte teatral, a experiência de assistir Bordados mexeu muito comigo, assim como mexeu, também pode ter mexido com a maioria dos homens presentes, acredito, pois fez com que fôssemos obrigados a reconhecer nossa condição de privilegiados e, assim, refletir como a questão das masculinidades tóxicas está cada vez mais presente em nosso cotidiano. Muitas histórias de violências físicas e simbólicas são trazidas para o centro do palco e as palavras ganham dimensão de cumplicidade diante do olhar das mulheres que estão próximas das atrizes e de todos que estão no teatro. As narrativas acionam, nas partituras físicas das atrizes, lugares muito específicos da cultura mulçumana e isso nos faz “folhear” nossos “livros” de afetos, assim como uma das atrizes abre e fecha um grande livro de histórias, de narrativas que desvelam memórias da – e para além da – cultura mulçumana. Não tem como não se sentir, de certa forma, comprometido e imbricado com o “chá”: “Como dizia minha avó, o amor deve ser bem tratado”. Essa fala de uma das atrizes-personagem, entre outras frases, fica pulsando em nosso inconsciente para além do espaço da representação cênica.
Assistir ao espetáculo do Amok Teatro gerou em mim uma urgência de continuar revisitando o que assisti e isso me levou a inquerir sobre as impressões de outras pessoas que assistiram a peça no mesmo dia comigo. Na impossibilidade de conversar com mais pessoas, recorri a duas pessoas conhecidas, cujas palavras transcrevo a seguir. O primeiro depoimento é o de Sara Rojo, diretora e pesquisadora teatral, e foi gravado imediatamente depois que saímos da sala e aqui transcrito. Recorri à Sara pelo fato sermos cúmplices na arte e na vida e, principalmente por ela ter sido uma das mulheres que foi convidada a tomar o chá bem próxima das seis atrizes-personagens. Eis suas impressões:
A sensação que tenho é de intimidade, de força, de um negócio que tem muito a ver com dentro da gente. Por exemplo, no minuto em que uma das personagens conta…, que uma das histórias conta que sua mãe ficou os últimos dois anos doente e o pai cuidou, eu pensei em minha mãe, eu pensei em meu pai e foi muito forte porque é a sensação que eu tenho… eu tinha cinco anos, minha morreu de câncer e o meu pai estava aí e o que foi este processo. E quando na outra história se fala da morte, pensei no meu pai morrendo nos meus braços e pensei também nesta sensação que eu tenho que não sei o que acontece depois que a gente morre, que não tenho nenhuma ideia do que acontece e para os que acreditam no outro mundo é mais fácil, mas para mim a vida é só um instante e este instante vai… (Rojo, em depoimento por mim gravado no dia 8 de abril de 2002, logo depois do espetáculo)
O outro depoimento é o de Vander André Araújo, escritor, graduando em Filosofia e um espectador que, como eu, ficou na plateia e, por sua vez, também foi extremamente afetado pelo trabalho:
Finalmente, retornei ao teatro do CCBB Belo Horizonte, após o longo período que a pandemia me impediu de frequentá-lo. O espetáculo da noite, Bordados, da Cia Amok, me emocionou bastante e confesso que chorei em algumas cenas daquele tea-ato.
Pode ser por isso: ele fala de amor, esse conceito complexo que quase nunca paramos para pensar no seu real significado. Um amor ali discutido sob o ponto de vista das mulheres, numa hora de chá, numa ação de tear o fio da história, ou seria mesmo bordar? O espetáculo traz a narrativa das mulheres orientais, muçulmanas, que tão pouco conheço e sobre as quais percebo que a maioria das pessoas ao meu redor ainda lança olhares preconceituosos.
No foyer do teatro, nós, espectadores homens, somos separados delas. Ficamos em filas distintas para acesso à sala e elas parecem, enfim, nessa zona neutra, terem conquistado o “direito” da precedência, de chegar primeiro, de tomar assento à frente na plateia, compartilhando o chá de hortelã com as atrizes em cena e, quem sabe, terem finalmente uma voz ativa, que será ali escutada e compreendida pelos demais presentes.
Nós, homens, devemos nos assentar ao fundo, assistindo à apresentação à borda daquele cenário tão ricamente montado, por que não dizer, bordado a mão, com detalhes árabes, e o que se vê é uma sucessão de histórias de vidas bordadas, marcadas de forma expressiva em seus rostos, pois é a única parte que nosso sentido (a visão) teve acesso naquelas cenas, em virtude das suas vestimentas típicas cobrirem todo o corpo feminino que estava ali em voga, como que conduzindo o motivo pelo qual elas continuavam vivas, coexistindo, apesar de cobertas por tecidos e, por isso mesmo, apagadas, silenciadas.
Assim elas iniciam o espetáculo, refletindo sobre o sentido das suas vidas, porque morremos, e, afinal, quem e por que amamos. Mas é preciso cuidado, em todos os sentidos, para não nos deixarmos enganar com o que elas dizem, de forma tão honesta e sem filtros. Elas expõem suas reflexões e nos levam a crer que, ao mesmo tempo em que amar é cuidar do outro, descuidar seria entregar-se sem propósito, culminando no fim dos corpos. Existem diversas formas de amar, tantas que ainda nem aprendemos a lidar com o afeto alheio quando ele bate sem avisar em nossa porta, como faísca da paixão e elas tentam nos convencer de que, por diversos modos, procuraram, durante suas vidas, manter a relação com o sujeito amado, mesmo diante de tantas dificuldades que o mundo parece ter-lhes imposto, seja por convenção cultural, ou mera tradição sem especulação.
As mulheres em cena contam relatos de vida bastante comoventes e nos dão conta de tudo: há a mulher tradicional que professa um discurso religioso e conservador sobre o conceito de família e relações conjugais; a esperançosa, que alimenta um amor platônico, que resiste ao tempo e espaço, mas, que se frustra com a realidade do reencontro e ao mesmo tempo nos deixa esperançosos ao contar a história de dedicação e cuidado masculino à sua amante com doença terminal; a que foi criada num ambiente masculinizado e que continuou a desenvolver esse papel masculino no casamento diante de um parceiro frágil e delicado, incapaz de abater um carneiro sem a sua ajuda e, por isso, ela deve continuar a puxar as rédeas desse cavalo, como sempre fez, desde sua infância em meio aos outros irmãos homens, para manter o seu casamento.
Além delas, há a mulher que se libertou do seu casamento, depois de uma viuvez e uma segunda tentativa fracassada que culminou num divórcio que a faz andar com os pés livres e solta, aconselhando as futuras gerações. E ainda há a mulher traumatizada, vítima de violência doméstica que, esfaqueada, vê a morte bater à sua porta, sobrevive e desenvolve uma dificuldade para se relacionar com outros homens.
Diante de todas elas, há a mulher jovem, de formação europeia, relembrando nossa tendência ocidental do eurocentrismo como um ditame da moral e dos bons costumes, que se apresenta ali como uma revolucionária, trazendo novas ideias e costumes para o debate com as mulheres que chegam a se horrorizar com algumas das suas falas vanguardistas. Ao mesmo tempo em que quer libertar-se de algumas tradições, como seu véu, ela tem saudade do seu país, de onde parece não querer ter saído, da comida, cheiro, sabores, sol, pois é ali que ela ainda guarda suas mais doces memórias de infância e onde aprendeu a amar.
E foi exatamente isso que a minha memória reteve do tempo a que me dispus a assistir ao espetáculo: uma sucessão de falas e relatos sobre as relações humanas necessárias que garantem a nossa existência. Também a visão feminina de um universo religioso e cultural do Oriente, que dita as normas de convivência social, bem distante da minha realidade, regido por uma heteronormatividade. Daí, captei o aspecto mais sentimental desse teatro: precisamos desenvolver a empatia, sentar para conversar com e sobre o outro, o que nos afeta e por que estamos tão distantes dele, sendo que, em se tratando de amor e cuidado, o diálogo e a presença constante tornam-se cada vez mais fundamentais, se é que ainda queremos viver em sociedade e cuidar das próximas gerações, após uma experiência traumática de confinamento, isolamento e distanciamento social impostos pela pandemia. (Araújo, depoimento recebido por e-mail em 8 de abril de 2022, às 23h48, no mesmo dia após termos assistido ao espetáculo, grifos do autor).
Minha leitura analítica não se conclui aqui. Assim como não consegui cortar nenhuma parte dos textos da Sara e do André, porque simplesmente ambos conversam muito com meus olhares e anseios críticos. O desejo que segue pulsando intensamente é o de, utopicamente, escrever – e decifrar – o mundo, como se isso possível fosse… fica a sede fáustica que, no plano dos quereres ideológicos, me movimenta ao (e de) (ao?) encontro da arte.
Fichas Técnicas:
Citações
Atuação e concepção: Bruna Chiaradia
Direção: Gui Augusto
Dramaturgia: Bruna Chiaradia e Gui Augusto
Consultora de dramaturgia: Elisa de Jesus
Designer de luz: Bruno Cerezolli
Figurinos e adereços: Ricca Costumes
Cenografia: Jordana Ferreira
Trilha sonora: Jackson Abacatu
Canção “O Rio e o Medo”: Isabella Bretz
Preparação corporal: Gui Augusto
Preparação vocal: Izza
Preparação musical: Sérgio Silva Nicácio
Projeções visuais: Gui Augusto
Designer Gráfico: Gui Augusto
Fotografia: Fabiana Loyola, Flávio Souza Cruz e Jordana Ferreira
Captação do espetáculo em vídeo: André Oliveira
Produção: Elisa de Jesus
Death Lay – na vida tem jeito pra tudo
Atuação e Concepção: Anna Campos
Dramaturgia e Direção: Antonio Hildebrando
Assistência de Direção: Isabela Arvelos
Confecção de Boneca e Figurinos: Eduardo Felix
Trilha Sonora: Luís Rocha
Música Lágrimas de Rio: Isabela Arvelos
Músicas I’m gonna fly e Tema Artes Cênicas Mês a Mês: Tatá Santana
Desenho de Luz: Enedson Gomes
Cenotécnica: Ivanil Fernandes
Preparação Vocal: Isabela Arvelos
Vídeo-arte e Designer gráfico: Fabiano Lana
Manipulação: Isabela Arvelos
Consultoria de Manipulação: Liz Schrickte
Confecção Máscara: Rafael Bottaro
Assessoria de Imprensa: Rizoma Comunicação e Arte
Comunicação: Uma Assessorias
Coordenação de Produção: Enedson Gomes
Produção Executiva: Enedson Gomes e Isabela Arvelos
Produção: OLÁ
Realização: Grupo Oriundo de Teatro
Querença
Concepção: Breve Cia
Atuação: Anair Patrícia e Renata Paz
Direção e Dramaturgia: Amora Tito
Preparação vocal e composição musical: Michele Bernardino
Cenografia: A Baionista
Trilha Sonora e captação de áudio: Letícia ngelo
Figurino e adereços (concepção): Anderson Ferreira
Figurino e adereços (execução): Anderson Ferreira, Arthur Alves e Aniah Braga
Preparação corporal: Renata Paz
Desenho de luz e operação: Régelles Queiroz
Assistente de iluminação e designer de vitrais: Victor Santos
Equipamento de iluminação e efeitos especiais: Gato de Luz
Produção executiva e comunicação: Mexerica Cultural
Orientação de pesquisa: Anair Patrícia
Workshop de cuíca: Débora Costa
Vivência de Capoeira Angola: Joyce Afrika e Sabrina Alves
Fotografia: Renca Produções
Realização: Galpão Cine Horto
Bordados
Texto e direção: Ana Teixeira e Stephane Brodt
Elenco: Fathmeh – Carmen Frenzel | Massarat – Adriana Rolin | Hiba – Jacyan Castilho | Khadija – Sandra Alencar | Nesrine – Vanessa Dias | Walla – Vania Santos
Músicos: Rudá Brauns (off), Vanessa Dias e elenco (live)
Produção: Amok Teatro