_ por Guilherme Diniz _
Crítica escrita a partir da peça Sábado Descontraído (Samedi Détene), de Dorothee Munyaneza (Ruanda/França), apresentada na MITsp 2020.
Em Sábado Descontraído (Samedi Détente), concebido por Dorothée Munyaneza, assistimos ao dilema de uma memória que tenta dimensionar a dor e o extermínio produzidos no terrífico Genocídio em Ruanda (1994), a partir de uma perspectiva poeticamente testemunhal que lida com as consequências históricas de tal acontecimento nas consciências individuais e coletivas de um povo à beira de seu mais profundo abismo. Ao revisitar o passado, ainda vivo como uma ferida aberta, a encenação desenvolve uma postura ética implicada na reflexão sobre a herança história que matiza os seus processos identitários e estéticos.
A dramaturgia aqui encara não apenas o morticínio avassalador, mas também os fantasmas que daí surgem. Assim como na poesia da santomense Conceição Lima, Dorothée enfrenta os muitos e aflitivos fantasmas que habitam sua memória histórica. Narrar as histórias dos fantasmas é uma tentativa de evocar os ausentes corpos insepultos para de alguma maneira fabular, esteticamente, possibilidades de dar sentido ao caos. Em sua presença invisível (ou ausência sensível) o fantasma é aquele ou aquilo que perturba o presente, pois recusa-se a ser esquecido.
A narrativa de Dorothée é vertiginosa, apresentando o seu drama em crescer em meio ao aniquilamento; constituir-se como sujeito a partir dos rastros da destruição. Naquela realidade extremada, a morte se converte em um modo de vida.
Historicamente, o genocídio em Ruanda foi alimentado por nações europeias que, ao instituir separações e hierarquias entre os grupos humanos daquele país, desenvolveu uma malha colonialista a instigar e a se aproveitar de conflitos. “O que me levou a matar meu amigo?”, questiona-se alguém ao dar-se conta da hecatombe concretizada pelas dinâmicas de separação e/ou pelas “políticas de inimizade”, para usar uma expressão do filósofo camaronês Achille Mbembe. No frenesi sanguinolento e anódino, outra tímida e crucial questão surge após tanta violência: “Quem é o inimigo”? Uma vez mais, o cinismo europeu que estimulou o ódio entre pares deu as costas ao sangue derramado.
Cenograficamente, os objetos, em sua concretude, são elementos determinantes na encenação, pois possuem um caráter residual dos eventos bélicos; a guerra passada se insinua nas roupas, na mesa, no rádio, que evidenciam rastros de uma humanidade em colapso. O programa radiofônico (cujo nome remete ao título da peça) que Dorothée ouvia quando criança é a expressão do trauma, pois ouvir aquelas canções é reconectar-se à dor. Logo, o rádio se projeta como sinédoque de um processo brutal de fragmentação.
Em Sábado Descontraído, os corpos em cena são portais de memórias, para pensarmos com Leda Maria Martins. O potencial estético-cultural do corpo em reatualizar as afetações da memória, conferindo outros e novos sentidos para a experiência. Uma corporeidade que, na sinestesia de sua ação poética, ritualiza e reinscreve figurações do vivido e do imaginado. Articular a história e memória, como fabulação, torna-se um processo de reflexão sobre o passado para compreender seus ecos no presente.
Os artifícios sonoros de Sábado Descontraído constituem uma polifonia disruptiva. A massa sonora difusa e multifacetada, amplificada por sintetizadores, gera ecos que povoam o palco com numerosas vozes e prantos clamando, angustiadamente, por justiça. A vocalidade de Dorothée é um forte vetor de sentido; evocando cânticos como atos de expurgação, conjuração e expressão mesma da dor e da consciência cindida.
Narrar aqui pode ser pensado como um gesto que revisita um momento histórico para deixá-lo simbolicamente em suspensão, dilatando sua dimensão temporal a fim de costurar um sentido novo para a vida a partir dos retalhos do aniquilamento.