– Por Clóvis Domingos –
Crítica a partir do espetáculo Frankinh@, uma História em Pedacinhos, do Projeto Gompa, visto em 10 de novembro de 2024 no Entre – Festival das Infâncias, no teatro do Centro Cultural Unimed-BH Minas.
Em sua temporada desse ano, o Entre – Festival das Infâncias, continua com sua proposta de apresentar trabalhos que escapam de certos campos tradicionalmente identificados com o que se denomina “teatro infantil”, e para isso a curadoria feita pela artista e pesquisadora Brenda Campos, optou por trazer espetáculos cujas múltiplas linguagens (teatro, música e circo) não abriram mão de provocar e experimentar diferentes formatos, temas e espacialidades.
Com o Grupo Trampolim e sua Invasão de Palhaços na Praça da Liberdade, o corpo coletivizado e festivo ganhou espessura no contato e atrito com os espaços abertos da cidade. Já no espaço do teatro do Centro Cultural Unimed-BH Minas, Tum Pá (Grupo Barbatuques) convocou o corpo brincante a ritmar sonoridades e canções gerando assim expressiva interação entre palco e plateia. Depois foi a vez da chegada de: As três fadas moribundas (Coletivo Bufadas) com sua arte da bufonaria nos envolvendo numa história que colocou o corpo na fronteira: de um lado a fragilidade e a dor da perda (no caso, de uma asa) e do outro, a força da amizade, do companheirismo e do riso farsesco presentes na luta e resistência de personagens que experimentam muito de perto a precariedade e o abandono social. No conjunto de trabalhos acima destacado é possível verificar a produção de cenas inquietas e insurgentes voltadas para as infâncias bem como para todas as pessoas, podendo inclusive suscitar encontros intergeracionais.
Outra ação desenvolvida nos dias de apresentação dos espetáculos foi a mediação cultural realizada em parceria com a arte-educadora Bárbara Flor. Trinta minutos antes da sessão, a mediadora propunha atividades lúdicas a fim de sensibilizar e aproximar crianças e adultos dos contextos específicos de cada trabalho. Uma forma de aquecimento e envolvimento. Após as apresentações ainda acontecia uma conversa aberta entre artistas, críticos do Horizonte da Cena e o público, e dessa forma um ciclo completo de mediação cultural se concretizava no cruzamento entre experimentação lúdica, fruição estética e reflexão crítica.
Assistir a Frankinh@ do Coletivo Gompa solicitou que meu corpo se misturasse mais junto às crianças e seus familiares nas primeiras cadeiras do teatro. Desejava sentir e acompanhar a vibração e reverberação do público. Já na ação de mediação cultural da artista Bárbara Flor pude perceber algumas sinalizações e acenos referentes ao espetáculo que iria assistir logo depois. Tendo como materiais uma folha de acetato (lâmina de retroprojetor) e um marcador permanente, uma pessoa segurava o acetato em frente ao rosto e a outra desenhava em uma parte do mesmo. Depois passava para frente e a próxima pessoa da fila segurava enquanto a que havia segurado agora desenhava. Era divertido ver as diferentes reações das pessoas quando o desenho da face surgia pronto. Um misto de surpresa, alegria e estranhamento. O espectador era convidado a criar, pedaço a pedaço, uma figura que depois era revelada para todos. Ali, nessa ação já adentrávamos à questão crucial que permearia toda a peça: o gesto de produzir uma criatura e depois se deparar com a sua diferença.
Criado de forma colaborativa, Frankinh@ é inspirado na obra Frankenstein, de Mary Shelley e apresenta a história de Victor Frankenstein, um jovem esquisito e solitário que, quase sem querer, acaba criando alguém para lhe fazer companhia, desafiando os limites da ciência e gerando espanto devido à sua tenra idade. No entanto, essa Criatura não sai exatamente como ele planejara. Victor vai precisar entender que Frankinh@ tem vontades próprias e é bem diferente do que ele imaginava. No espetáculo são abordadas questões como isolamento, desencontro, medo, exclusão, surpresa, amizade e aceitação das diferenças. A narração da história dessas aventuras se dá por “pedacinhos”, isto é, textualidades em camadas poéticas, da mesma forma que somos apresentados a cada parte que irá ser utilizada e manipulada por Victor em seu experimento. Se a narração é o alicerce que estrutura o espetáculo (Liane Venturella com sua voz metálica nos prende o tempo inteiro), a materialidade da encenação ganha ênfase na fusão de diferentes expressões artísticas como teatro, dança, música e artes visuais.
Fotos de Igor Cerqueira
Com um cenário minimalista composto por uma maca (que também serve de mesa) e várias placas metálicas, essas, vão a cada momento, se transformando em outras coisas e lugares, como o esconderijo do jovem, um espelho cuja imagem surge deformada e também funcionam como chão para a Criatura pular e brincar quando vai para a cidade.
Frankinh@ mistura poesia visual e fábula contemporânea trazendo temáticas urgentes para nosso tempo atual: como sustentar a singularidade e diferença em meio a tanta massificação e normatização dos corpos? O que pode um “corpo esquisito”? Por que se portar de uma forma diferente (como por exemplo, ser tímido) parece hoje exigir um diagnóstico médico? Será a infância apenas uma fase de descobertas e alegrias ou existem outros “pedaços” que podem ferir e machucar? Na apresentação, percebi uma plateia atenta, silenciosa e concentrada, muitas vezes encantada com a dinâmica executada pela encenação, seja por causa dos ruídos sonoros, os jogos corporais entre Victor (Thiago Ruffoni) e a Criatura (Fabiane Severo), seja por alguns efeitos de ilusionismo. Também havia algumas crianças se divertindo quando a Criatura desengonçada tentava aprender os primeiros movimentos e posicionamentos de seu corpo.
Minha atenção permaneceu capturada pela beleza e profundidade de algumas partes e pedaços do texto. Enquanto assistia ao desenrolar da trama, no escuro, ia anotando trechos que me sensibilizavam, tais como: “a gente nunca está preparado”, “nem sempre somos como imaginamos” e “é possível juntar algumas coisas, outras não”. Arrisco-me a pensar que enquanto para as crianças a imersão no jogo ali ao vivo parecia ser um modo de entrada, eu me via atravessado por dois movimentos: acompanhava o desenrolar da ação presente ao mesmo tempo que retornava a fatos, sensações e lembranças relacionadas à minha infância. Nesse duplo mergulho entre passado e presente uma ponte se estabeleceu em minha memória: a sensação de também me sentir esquisito quando era pequeno e meu gosto e interesse pelo mundo das letras e das artes. Esse pedaço da minha história se conectou com o espetáculo reativando as solidões e as invenções da minha infância.
O Projeto Gompa com Frankinh@ consegue a astúcia de conversar sobre um assunto tão delicado (a discriminação social na infância em forma de bullying) com crianças grandes e pequenas, nos ofertando um espetáculo de alta elaboração estética e filosófica, equilibrando-se entre pedaços mais imagéticos e sensoriais e outros com textos refinadamente poéticos que nos convidam a refletir sobre as complexidades da vida e o estranho que habita em cada um de nós. Cada pessoa inventa uma ilusão em resposta à sua solidão constituinte, pois como nos lembra a narradora: “ às vezes a gente se sente sozinho, mesmo acompanhado”. Ninguém vai tampar nossos buracos internos. Na relação com os outros não há possibilidade de correspondência absoluta. Como Victor que não corresponde às expectativas familiares e sociais, sua Criatura também não se adequa a seus anseios e sai pelas ruas para ganhar o mundo e outras experiências. O jovem cientista terá que aprender a viver com a ausência e perda de seu companheiro. Mas o tom que perpassa o espetáculo passa longe de qualquer dimensão lúgubre ou pessimista, o que há é o enigmático, o inusitado, o que predomina é a ludicidade.
Destaco na peça um momento no qual o personagem Victor fica perdido ao ensinar para a Criatura a diferença entre as palavras “não” e “mão”. É que as palavras e as coisas nem sempre coincidem, mas sempre confundem. Adentrar o mundo da linguagem sempre traz e desafios ao mesmo tempo que nos integra no campo discursivo. Palavras têm o poder de forjar corpos e realidades, como o que se dá com Victor ao ser nomeado de “esquisito”. Ele é mais falado do que fala. O espetáculo nos mostra que a linguagem também falha, só acontecendo “em parte” ou “à parte”. E entre partes que se encaixam e outras que se separam, o jovem cientista junta e espalha os pedaços e restos possíveis para construir e preservar sua indelével marca, seu desenho singular, sua vida única. Tudo isso é emoldurado pela força da ficção. Entre brincadeiras e bricolagens, Frankinh@ mostra que há em nós e nos outros, partes consideradas mais acessíveis e já outras, intraduzíveis.
Como afirma o poeta[1]: “traduzir-se uma parte, na outra parte, que é uma questão de vida e morte. Será arte”?
Ficha técnica:
Elenco: Fabiane Severo, Liane Venturella e Thiago Ruffoni
Direção: Camila Bauer
Direção de movimento: Carlota Albuquerque
Dramaturgia: Camila Bauer e Marco Catalão
Colaboração dramatúrgica: Liane Venturella
Sonografia: Álvaro RosaCosta
Pianos e voz: Simone Rasslan
Cenografia: Elcio Rossini
Adereços: Elcio Rossini e Liane Venturella
Iluminação: Ricardo Vivian
Figurino: Daniel de Lion
Maquiagem: Marília Ethur
Colaboração artística: Douglas Jung, Jéferson Rachewsky, Luana Zinn, Pedro Bertoldi e Renan Villas
Psicóloga convidada: Camila Noguez
Arte gráfica: Jéssica Barbosa
Direção de produção: Fabiane SeveroRealização e Produção: Projeto Gompa
Financiamento: Prêmio SESC de Artes Cênicas
[1] Poema Traduzir-se, do poeta Ferreira Gullar.