— Luciana Romagnolli —
Crítica de “O Quadro de Todos Juntos”, do Pigmalião Escultura que Mexe.
Ao longo da última década, parte significativa dos espetáculos produzidos na cidade de Belo Horizonte a conquistar projeção nacional apresentava certa qualidade afetiva. Como toda generalização, esta é, claro, uma simplificação, guardadas infinitas variantes, no intuito de reconhecer uma atmosfera em comum, já em transformação nas criações desses mesmos grupos em anos mais recentes. Singular na cena mineira desde a adoção de uma linguagem de teatro de bonecos para adultos, o grupo Pigmaleão Escultura que Mexe se distingue desse conjunto pela produção de afetos perversos. Assim, joga luz sobre outro aspecto cultural que a cordialidade costumeira recobre: a hipocrisia da tradicional família mineira. Sem dúvida é possível substituir o dado geográfico da expressão sem alterar os outros termos, mas resiste entre as montanhas de minério condições especiais para uma dramaturgia rodrigueana que mereceriam estudo sócio-antropológico. Pernambucano como era o autor das tragédias cariocas, Nelson Rodrigues se sentiria em família.
Espancar docemente – embora seja o lema de outro grupo – descreve perfeitamente a atmosfera criada pelo Pigmalião em “O Quadro de Todos Juntos”. Mas o espancamento aqui é mais brutal e deixa sequelas. A evidência mais à superfície de tal contradição é o uso de máscaras e bonecos de porcos, fabricados com riqueza de detalhes. Nem cães e gatos, nem corvos: os porcos são bichos dúbios, entre a graça de um filhote e a imagem grotesca num lamaçal. Na forma de bonecos afáveis, a ternura é reforçada pelo modo como gesticulam, como o porquinho enxuga uma lágrima e cutuca a mãe ou como a porquinha carrega a tiracolo um ursinho. Inocência violada pela violência das relações familiares, vistas através de uma lupa que amplia o ciúme, o desejo, a crueldade e a indiferença entre pais e filhos, irmãos e irmãs.
O flash da câmera aciona a hipocrisia ao gerar a pose em trajes de domingo para o retrato da família perfeita. A dramaturgia se constitui desses quadros fixos fotográficos entremeados por cenas expressionistas do cotidiano familiar, sugestivas de violências físicas e psicológicas terríveis. Na sequência de maus-tratos praticados por adultos e crianças forja-se o ciclo do nascer do trauma e do despertar da crueldade em cada nova geração. O abandono afetivo e o abuso cometido por quem é mais íntimo molda a personalidade dos pequenos, como se vê no olhar do porquinho deixado de lado ou na ação na porquinha que reproduz no urso de pelúcia o ultraje sofrido. Pelo poder de captura do tempo, próprio da fotografia, o repetir dos flashes deixa uma sensação memorialista de presente tornado passado. Ou, ao menos, de um apontar para a posterioridade (esta à qual sempre se destinam as fotos), para o ciclo que não acaba e, mesmo que cesse, deixa marcas.
Tais dinâmicas relacionais entre gerações ecoam temas psicanalíticos, remetem a complexos freudianos, sem, contudo, constituir um discurso cênico psicologizante, pois operam no nível da sugestão e da irracionalidade. Tal como na “Filosofia da Alcova”, de Marquês de Sade, obra propulsora (e homônima) do espetáculo anterior do grupo; em “O Quadro de Todos Juntos” o foco recai sobre a sexualidade desviante das normas sociais e, neste caso, escassa em consentimento. O teatro de animação permite um tratamento mais livre e imaginativo dessas temáticas adultas tabus, pois o boneco surge como uma figura transumana, capaz de transitar pelas zonas mais sombrias das relações humanas com poesia, sustentado simultaneamente peso e leveza.
A linguagem desenvolvida pelo Pigmalião é de elaboração sofisticada, com recurso simultâneo à atuação de atores com máscaras e a bonecos manipulados, sob uma iluminação direcionada que inunda o entorno em breu. Tudo isso em justa sincronia com uma trilha sonora constante, misto de instrumental, canto lírico, ruídos e grunhidos, que funcionam tanto para gerar tensão (como em filmes mudos ou de terror) quanto como uma espécie de gromelô, a instigar a imaginação do espectador para atribuir significado ao que vê e ouve. A encenação, assim, faz-se partitura musical a ser seguida à risca por atores-manipuladores que, como bailarinos clássicos, não podem perder os tempos.
Esse ritmo interno rigoroso é cumprido pelos atuantes, que dão vida à matéria morta e desaparecem no quadro escuro como bem se espera de um manipulador. Há, porém, outra camada rítmica que ainda pode ser lapidada – aquela resultante da relação entre o microcosmo de cada cena e a macroestrutura da sucessão de quadros, cuja toada constante atinge um ponto de previsibilidade e poderia se favorecer do modular de gradações. Um ponto-chave que mereceria ser mais enfatizado, por exemplo, é o revelar do boneco sob a máscara, potencial gerador de curto-circuito cognitivo com fortes desdobramentos simbólicos.
Para o espectador que busca distração agradável no teatro, “O Quadro de Todos Juntos” pode ser uma experiência indigesta. O gesto do grupo em relação o público é o gerar de desconforto, a ilusão de um pesadelo, mas sempre na tensão com o prazer estético proporcionado pela linguagem incontornavelmente lúdica dos bonecos.
*Espetáculo visto em 14 de agosto de 2015, em Itajaí/SC.