por Luciana Romagnolli*
“Como a Gente Gosta”. Foto da Mimese Produtora. |
Ao se armar uma roda na rua, um desafio é fazer teatro com economia de recursos sem prejuízo às qualidades fundamentais da história representada nem à atratividade das cenas para o público. O grupo mineiro Maria Cutia resolve bem essa equação em “Como a Gente Gosta”, sua versão para a comédia de Shakespeare conhecida em português pelo empolado título “Como Gostais” – no original, “As You Like It”. A diferença de tradução denuncia a escolha por uma comunicação mais clara com o espectador, talvez menos poética, mas com uma significativa mudança do “tu” para o coloquial “a gente”, que cria uma ideia de coletividade e proximidade: dois conceitos-chave para um espetáculo de rua e que são o ponto forte deste. Além de reforçar um sentimento de prazer por parte dos atores, que sustenta a vitalidade da encenação.
Diante de um painel pintado que servirá a uma mudança simples de cenário e a acobertar a artesania dos bastidores, bastam quatro atores, seus figurinos e instrumentos musicais para dar vida às peripécias de seis jovens apaixonados e alguns personagens mais. A adaptação “livremente inspirada” foi feita por Eduardo Moreira, ator do Grupo Galpão, que também dirige a montagem. O texto final sintetiza a obra original recortando dela os conflitos amorosos principais, em um roteiro mais enxuto e dinâmico, mas que respeita o tempo de desenvolvimento dos personagens e de suas ações, sem retalhos bruscos.
“Como a Gente Gosta” retoma o tema da paixão investigado por Shakespeare em outras tantas obras e o encaminha para um final feliz. É uma matriz da comédia romântica que se desdobraria nos séculos seguintes em uma infinidade de histórias de adiamento do enlace de casais. Sua artimanha central está no jogo metateatral pelo qual a jovem Rosalinda faz-se passar por Ganimedes. É uma mocinha astuciosa e ativa, que toma as rédeas de seu destino.
Ao lado do diretor Eduardo Moreira, outra atriz do Galpão, Inês Viana, responde pelo desenho das cenas. Eles recorrem à experiência de fazer Shakespeare na rua do grupo veterano, consagrado duas décadas atrás por uma emblemática montagem de “Romeu e Julieta” (que voltou ao cartaz neste ano). Sente-se a familiaridade com a obra do bardo em igual proporção à liberdade de moldá-la às vontades e necessidades da equipe atual. Ao mesmo tempo, não há qualquer intenção de reproduzir a estética nem criar um subproduto do espetáculo de outrora. “Como a Gente Gosta” funciona pelas próprias pernas.
Pernas de quatro atores – Hugo Araújo, Leonardo Rocha, Mariana Arruda e Marielle Brasil – que suam para dar conta do troca-troca dos personagens, caracterizados com nitidez por figurino e voz, e ainda manter a empatia com a plateia. O modo transparente como essa alternância é assumida na cena cria um jogo interessante entre os atores e seus personagens que ecoa a máxima de que o mundo é um teatro com que o espetáculo se inaugura. Para o público, é um dos mecanismos que inspiram a cumplicidade, assim como a fala empática dirigida diretamente ao espectador.
O espaço da encenação se preenche pelas atuações vivazes e pela música, onipresente. Mais do que vestir diálogos de melodia, a música se insere nas bases da dramaturgia. Daí se origina uma das cenas mais belas já no início do espetáculo – a luta de Orlando contra um forte guerreiro, travada pelo choque das baquetas contra seus instrumentos musicais.
* Crítica originalmente publicada no site do Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente, em setembro de 2012.