“9 Mentiras sobre a Verdade”, do Teatro Líquido (RS). |
por Luciana Romagnolli*
“9 Mentiras sobre a Verdade” toma de assalto o espectador pela presença ambígua da atriz Vanise Carneiro a rasgar o tecido ficcional do espetáculo logo que adentra o teatro. A situação de diálogo direto que ela estabelece convoca o público a tomar consciência de seu papel de interlocutor no ato teatral que se desenrola, inaugurando uma cumplicidade indispensável para o jogo de negação da representação proposto.
Vanise se apresenta como atriz. Não a que ela de fato é, mas outra. A exemplo do poeta cantado nos versos de Fernando Pessoa que finge as próprias dores, essa outra finge uma verdade incapaz de sustentar. Seu estar no palco, afinal, se justifica ficcionalmente como uma reunião para mentirosos compulsivos, à qual ela comparece encoberta de mentiras autoprotetoras.
Essa situação intricada no limiar entre a ficção da personagem e a realidade do público exige da atuante transitar por corda bamba, mantendo sempre uma sustentação instável. Isso é possível porque Vanise, atenta, responde às reações mínimas da plateia dentro de uma margem de improviso que lhe permite valorizar o momento presente daquela apresentação e desmontar condicionamentos cristalizados de recepção teatral associados à representação, conquistando uma distinta qualidade de escuta do espectador.
Desse modo, a encenação dirigida por Gilson Vargas prepara uma zona de convívio e subjetividade na qual pode se assentar a dramaturgia fragmentária de Diones Camargo, construída como um fluxo de pensamento regulado pela autoimagem de Lara, a protagonista do monólogo, e pela imagem que ela pretende passar aos outros. Os desdobramentos contrários a essa disposição inicial da personagem se desvelam por meio de implícitos e subentendidos.
O texto tem a sutileza de tratar de memória e perda por vias indiretas que se servem de procedimentos metalinguísticos, tecendo camadas de realidade, ilusão e jogo representacional, à semelhança do que o dramaturgo canadense Daniel McIvor tem feito em peças como “In on It” e “A Primeira Vista”, encenadas no Brasil por Enrique Diaz.
“9 Mentiras sobre a Verdade”. Foto de João Rocha. |
Lara atua no centro desse jogo metalinguístico com o teatro e o cinema. O primeiro, num ato falho que inverte os sentidos de mentira e verdade. A sétima arte, à sua vez, materializa o impulso de ficcionalizar a vida e transcender seus limites para embelezar um cotidiano de expectativas frustradas, em referências significativas a filmes como “A Rosa Púrpura do Cairo” e “Thelma e Louise”. O aparato audiovisual do espetáculo evidencia recursos impossíveis na realidade diária: o corte, a luz capaz de mudar o cenário, a concretização do que se sonha.
Vanise encontra um registro delicado de dissimulação da ansiedade, deixando escapar pelas frestas de seu discurso e de seus gestos a insegurança e o tormento interno da personagem. A figura construída de sua faceta pública somente sucumbe diante de um decisivo recurso ao real –o celular –, que desfaz sua trama de autoengano. O figurino é o receptor dessa transformação: ela limpa o batom, prende o cabelo e veste uma camiseta, desistindo da vaidade e do fingimento.
Enredada por suas mentiras, fruto do excesso de “lava” que carrega em si, Lara atinge pontos sensíveis de um imaginário de solidão feminino, que se atrita ao repertório cinematográfico das comédias e dramas romantizadores das relações passionais e familiares. Uma metáfora bela e pungente aumenta o peso de seu lamento e o universaliza para além do “monólogo de mulher”: a associação da solidão humana ao afastamento progressivo das partículas cósmicas, até a incomunicabilidade absoluta, o desencontro eterno.
*Crítica de espetáculo originalmente publicada no site do Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente, em setembro de 2012.
*Crítica de espetáculo originalmente publicada no site do Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente, em setembro de 2012.