por Luciana Romagnolli*
“Cinza”. |
Desde a entrada da atriz e manipuladora Paloma Barreto com vestes de papel-jornal, cumprindo uma movimentação rígida e de mãos tateantes, aquém à mobilidade potencial de um corpo humano, o espetáculo “Cinza” funda uma zona de embaralhamento entre o animado e o inanimado. Essa será uma tensão latente, embora nunca radicalizada, na encenação da Cia. Fio de Sombra, à medida que se estabeleça a interação entre a manipuladora e o pequeno boneco igualmente feito de páginas de jornal por ela encontrado entre montes e caixas de mais folhas de noticiário a recobrir o palco.
Oculta sob um chapéu de abas largas, a manipuladora anima o boneco executando um roteiro de ações erráticas condizentes a um homem abandonado em meio a restos da civilização. A onipresença dos jornais, notadamente norte-americanos, instaura um signo documental no espetáculo, de cunho adulto, e acena para uma crítica socioeconômica ao sistema capitalista que exclui seres como aqueles: boneco e manipuladora. Sim, pois também ela se configura como uma excluída, uma vez que a consciência da presença da atriz é logo despertada no boneco. A dramaturgia se constrói de modo que ela o manipule em aparente apatia, mas faça com que ele a procure insistentemente, em impulsos de indagação, consulta e fuga.
A interação que assim se delineia entre manipuladora e boneco tende a diminuir a distância entre os dois planos, o do inanimado e do animado, numa tentativa de convívio que, dentro da dramaturgia criada por Rafael Cursi, significaria a ruptura da solidão na qual cada um está afundado.
Desse modo, a companhia de Campinas joga com a linguagem do teatro de bonecos, deslocando o foco que habitualmente recai somente sobre o objeto manipulado para um questionamento relativo ao isolamento do manipulador na técnica japonesa do kuruma ningyo – na qual cada boneco é animado por apenas uma pessoa, que tem as mãos e os pés livres para essa ação porque se apóia e se desloca sobre um banco com rodas. Aí reside a maior sofisticação do trabalho do grupo: na elaboração metalingüística, que se serve de características específicas da linguagem para promover os sentidos do espetáculo.
“Cinza”. Foto de Cynthia Oliveira. |
Contudo, as escolhas visuais impedem que esse procedimento seja colhido com maior clareza pelo olhar do público. Distinguir as formas torna-se uma dificuldade decorrente da opção pelo papel-jornal como substância de toda cenografia e figurino. Por mais que o material dê unidade e faça sentido dentro do universo proposto, em certos momentos não se pode reconhecer os objetos nem os limites dos corpos da manipuladora e do boneco. Tal confusão bem poderia ser um efeito a somar-se ao embaralhamento dos planos animado e inanimado, mas, em vez disso, atua como um ruído, borrando o delineio da gestualidade do boneco, de modo a ocasionalmente quebrar a ilusão pretendida.
“Cinza” escapa de ser um retrato trivial da rotina de um miserável no momento em que complexifica essa relação com a manipuladora, assumindo-a como personagem para além daquele boneco específico. Sobrepõe-se, ao abandono social representado pelo homem-objeto, uma camada na qual a memória de uma tragédia íntima se insinua no comportamento repetitivo e obsessivo da manipuladora (porém, a esta altura, a encenação impõe ao espectador uma nova dificuldade visual, sentida especialmente pela plateia mais distante do palco). A opção pela sutileza do implícito e por uma dramaturgia aberta mantém o espetáculo num campo de abstração e de sentidos dispersos. Fica o desejo por ver o grupo verticalizar as possibilidades metalingüísticas e narrativas deste trabalho, de modo a prover sua delicada construção de um maior poder de afetação.
* Crítica de espetáculo originalmente publicada no site do Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente em setembro de 2012.
* Crítica de espetáculo originalmente publicada no site do Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente em setembro de 2012.