Crítica a partir do espetáculo Glauco da Pigmentar Companhia de Teatro (Belo Horizonte/MG).
– por Clóvis Domingos-
Tem gente que censura o meu fetiche:
lamber pé masculino e seu calçado
Mas só de ver no quê o povo é chegado,
não posso permitir que alguém que me piche.
Onde é que já se viu ter sanduíche
de fruta ou vegetal mal temperado?
E pizza de banana? E chá gelado?
Frutos do mar? Rabada? Jiló? Vixe!
Café sem adoçar? Feijão sem sal?
Rã? Cobra? Peixe cru? Lesma gigante?
Farofa de uva passa? Isso é normal?
Quem gosta disso tudo não se espante
com minha preferência sexual:
lamber o pé e o pó do seu pisante.
(Soneto Nojento. Glauco Mattoso).
A primeira montagem da Pigmentar Companhia de Teatro traz a obra marginal de Glauco Mattoso para o palco, numa encenação marcada pela poesia, pela alteridade e pela delicadeza. Os sonetos mattosianos selecionados neste trabalho abordam as paisagens interiores e insurgentes dos desejos, conflitos, afetos, solidões e violências experimentados pelos corpos masculinos, mas que de alguma forma também podem abranger toda a pluralidade de corpos e existências. O corpo gay. O corpo hétero. O corpo negro. O corpo branco. O corpo do deficiente visual. O corpo do vidente. O corpo do trabalhador. O corpo do artista. O corpo dos espectadores. São muitos corpos. Corpos no encontro. O que podem os corpos na diferença, no comum, no mínimo, no múltiplo, no silêncio e na palavra?
É sobre a sexualidade das pessoas com deficiência visual. É sobre a sexualidade das pessoas negras e gays. É sobre possibilidade e negação. É sobre a exploração de outros sentidos, outros corpos, outros afetos. É sobre reconstrução daquilo que entendemos como corpo. São muitos corpos. Corpo magro, corpo gordo, corpo alto, corpo baixo, corpo padronizado, corpo liso, corpo peludo, corpo coletivo, corpo-presença no mundo.
Quantos corpos existem e vibram em meu corpo? Corpo vidente ou corpo vivente? Quais dos sentidos em mim prepondera: visão, tato, audição, olfato ou paladar? Qual é o registro de percepção que me atualiza isso de ser/experimentar um corpo?
Um ator deficiente visual, um ator vidente, um espectador com o corpo em crise.
Durante Glauco, fechei os olhos, abri os ouvidos, deixei que me metessem a língua. Depois abri os olhos, fechei os ouvidos, tateei minhas pernas, meti a língua no ouvido do espectador que estava do meu lado. Tantos jeitos de ser corpo.
Eu estou aqui te descrevendo essa minha experiência com o trabalho.
No espetáculo, os sonetos são repetidos em diferentes modulações e desenhos coreográficos pelos dois atores, quase como num convite à diferença e à singularidade. Os intérpretes parecem ser um, depois parecem ser dois: entre o dominador e o submisso são tantas velocidades e pigmentações. Ora opressor, ora oprimido, ora confidentes, ora amantes, ora inimigos. Multiplicidades. O corpo e seu duplo. Eu e o outro. Eu sou outro? Eu sou outros? Desses inumeráveis estados de ser….
A iluminação em Glauco opera entre o claro e o escuro criando jogos de percepção. Eu me experimentando vidente, eu cego, eu recortado nas brechas entre fragmentações e pigmentos. Pigmentar: dar a cor ou como Retinose Pigmentar? Ou seriam os dois? Importante marcar que os pigmentos (da pele ou da retina) muitas vezes determinam as relações dos sujeitos com o mundo e vice-versa.
Fechar os olhos, abrir os ouvidos, meter a língua.
Segurar a bengala, segurar o pau, lamber os pés, cheirar os sapatos. Pegar na mão.
No espetáculo, a bengala ressignificada em diferentes momentos: extensão, guia, falo, arma, brinquedo, limite. O masculino em questão. Movimento pendular entre repulsa e atração, entre estranhamento e reconhecimento. Ora em guerra, ora em pacificação. A luta interna e externa por não se dar conta daquilo que se percebe ser e assim se aceitar. A luta externa e interna para se integrar com menos violência àquilo que se sente e deseja. Eu e o outro. Eu com os outros. Eu contra os outros. Em Glauco os atuantes parecem ser um, parecem ser dois, parecem ser muitos. A produção de tapetes sonoros ao se descrever em cena o corpo do outro: con-tato, erotismo, descoberta.
Nesta montagem, a opção por uma moldura delicada para a crueldade poética e obscena de Mattoso se materializa através de um sarau cênico no qual se mesclam elementos de teatro, performance, dança contemporânea e instalação plástica. Uma encenação linguopedal[1] entre o tênis e o pênis. Numa ode ao pé masculino, o poeta ali se presentifica e se desdobra entre texto e movimento. Ativo e passivo. Lavar os pés para depois lamber e sorver com a língua. Língua real e língua poética.
Eu assumo: as palavras me penetraram melhor quando havia menos música e mais silêncio. Penso que ainda há um ajuste a ser feito, pela direção, entre a trilha sonora e os textos enunciados pelos atores em algumas partes do espetáculo, entendendo que ambos mais conversam do que competem. E mais: os sonetos mattosianos são também melodias que preenchem o espaço, bailam pelos corpos e fecundam nossos imaginários. Poesia que oscila entre o grito, a revolta, o escárnio, o sussurro e o gozo físico e espiritual.
Fechei os olhos, abri os poros, pelos, portas.
Daquilo que revida/re-vida/é Vida
Eu, vidente. A visão como condenação nossa de cada dia (também cansa!), como lugar de privilégio, como sentido que determina muitas exclusões no social, no afetivo, no sexual.
Como serão as vivências de um deficiente visual homossexual diante do peso da heteronormalidade e da heterossexualidade? Eu, vidente, e a minha sexualidade como um terreno tão obscuro. O que consigo enxergar? Quais dilemas seriam comuns e incomuns entre videntes e cegos em suas descobertas homoafetivas? Quais sentidos em disputa? O que é ser cego?
Ser cego é ter, a menos, um sentido.
Ficar cego é chorar tel-o perdido.
Ser cego é superar algum limite.
Ficar cego é sentir-se rebaixado
ao cão que, outrora solto, a jaula habite.
Ser cego é compensar, tudo apalpando,
ouvindo e farejando, mais agudo.
Ficar cego é chupar, engolir tudo,
ouvir risada e as ordens de commando.
Ser cego é achar que ao cego se permite
algum prazer. Ficar é, no solado,
lamber o pó, de alguém que, ao ver, se excite.
Ser cego é revidar. Eu não revido.
Fiquei, pois: levo o chute e nunca aggrido.
(Glauco Mattoso).
Quais luminosidades aí presentes quando escuto este trecho no espetáculo? A sinceridade do poeta me sensibiliza em sua condição de nem herói e nem vítima. Mas humano, demasiadamente humano. Um sujeito de contradições que habita naquele que ao “ouvir risadas e as ordens de comando” precisa enfrentar os preconceitos, sejam eles causados por sua deficiência que confronta a onipotência e a ilusão de muitos, como também o racismo, a homofobia e a intolerância. Glauco fala poeticamente desse desconforto produzido por aquilo que desconhecemos e evitamos nos aproximar.
Eu, você, nós. Tão vivos. Por favor, desce do palco e me toca?
Sou tocado, logo existo!
A língua-corpo e a língua-poema cavando lugares nesse mundo que não quer ver e nem falar sobre a pluralidade dos desejos humanos, daí a importância de Glauco como Poética de Implicação, isto é, nos sensibilizando, nos provocando, nos responsabilizando como parte dessa construção tanto social como ético-política. A palavra incorporada fura, a palavra flecha, a palavra fode. A palavra pode. Pode desorganizar certezas, modos automatizados de ser corpo, pode embaralhar os sentidos, acessibilizar outros registros sensoriais, pois como afirma o poeta: “mas como nem é surdo nem é mudo, o cego que viaja no poema, inventa o palco, a tela, o assumpto, o estudo”.
A dramaturgia de Glauco se move como um campo aberto e poroso: pode-se identificar ali uma possível narrativa na qual dois estranhos se encontram numa explosão entre desejo e violência, chegando a uma conciliação temporária de suas vontades até desembocar no abandono final no qual é preciso ir embora e não criar nenhum tipo de compromisso ou laço (seria algo bem típico na fugacidade das relações contemporâneas?); ou também poderia ser uma cena imaginada ou um sonho produzido na cabeça de alguém que na verdade estaria se debatendo consigo mesmo, ainda que em dimensão especular, isto é, de forma duplicada; ou então, numa terceira via, teríamos numa camada metalinguística; um trabalho cênico no qual dois atores se utilizam de materiais poéticos para “relatarem a si mesmos” a partir de motivações existenciais.
Esse deslizamento e multiplicidade presentes na construção dramatúrgica se revelam como recursos potentes para se emancipar a recepção dos espectadores, podendo assim gerar infinitas associações e diferentes percepções no convívio com o trabalho. Dessa forma Glauco pode ser relato, pode ser história, pode ser memória, pode ser fabulação.
Além da qualidade estética e técnica na execução do trabalho, aliadas a uma temática urgente, num país com forte e preocupante aumento de forças retrógradas e conservadoras, é preciso salientar a decisão da Pigmentar Companhia de Teatro em produzir esse espetáculo sem qualquer tipo de patrocínio, contando com inúmeros apoios, num momento tão difícil de precarização da cultura e de censura às artes.
Eu estou aqui te descrevendo essa minha experiência com o trabalho.
Eu estou aqui reescrevendo Glauco com os vestígios, sensações e afetações que restaram e me atravessaram.
Eu estou aqui querendo meter a minha língua nos teus buracos.
Você me vê ou me escuta?
Vem, revida!
Espetáculo visto/escutado/experimentado em 22 de março de 2019 na Funarte MG.
Ficha técnica:
Elenco: Dudu Melo e Vinícius Guedes
Texto em Sonetos: Glauco Mattoso
Argumento: Dudu Melo e Allan Calisto
Coreografia e preparação corporal: Samuel Samways
Trilha sonora original: Gabriel Murilo e Lucas Mortimer – Confeitaria
Figurino: Clarice Rena
Assistente de figurino: Renan Vieira
Cenário: Helvécio Izabel
Projeto de Luz e Fotografia: Allan Calisto
Assistente de produção: Elisa de Jesus
Assessoria de imprensa: Bremmer Guimarães
Produção executiva: Realização: Dudu Melo e Alan Calisto
Apoio: Galpão Cine Horto
[1] Referente à obra Massagem Linguopedal de Glauco Mattoso.