— por Luciana Romagnolli —
As questões de gênero retomaram força no terceiro dia do 16º Festival de Cenas Curtas, tanto durante três das cenas apresentadas quanto nos intervalos. Guilherme de Morais e demais artistas da Trans Residência Experimento Queer entreteram o público com uma iniciação ao vogue, dança estilizada a partir das poses típicas de capas da revista homônima, dando o tom camp que retornaria ao longo da noite, especialmente na última cena.
De início, “Jão Brando – O Homem que Virou Mulher”, trabalho de Vitória da Conquista (BA), aproxima a tradição circense da questão contemporânea sobre afirmação da transgeneridade, homoafetividade e dos novos modelos familiares, criando uma peculiar relação entre o conservadorismo da forma e o progressismo libertário do conteúdo. Ao tratar de uma proposta como essa, cabe considerar os seus contextos de inserção. Não são os mesmos os efeitos que pode agenciar num ambiente de reiteração do machismo, como pode ser o circo tradicional e a rua feita palco, ou num contexto em que a heteronormatividade já vem sendo questionada, como o próprio Festival de Cenas Curtas e outros tantos espaços teatrais de Belo Horizonte e outras localidades.
Assim, haveria ao menos duas maneiras de se olhar para a fábula que os palhaços dirigidos por Yann de Abreu Schettini realizam. Por um lado, a forma aparentemente inofensiva que repete o próprio modelo do amor romântico heteronormativo, com conflito e final feliz, proporciona o grau desejável de “já conhecido” que certo grupo de espectadores precisaria para aderir ao espetáculo, e só então ser confrontado com um desvio do modelo dominante. A corporeidade artificial, semelhante às poses do vogue, é que vai causar algum curto-circuito cinestésico no formato da fábula moral.
Por outro lado, toda forma é uma visão de mundo, um posicionamento político, de modo que a forma conservadora, quando cumprida sem distância crítica, contribui para a manutenção de determinada sensibilidade vigente. Tanto é que “Jão Brando” investe na desconstrução da homofobia, mas perpetua o imaginário misógino da violência contra a mulher na cena em que Jão bate na esposa, provocando a espécie de riso apaziguador que ajuda a naturalizar um comportamento. A interseccionalidade entre as formas de opressão é uma urgência para se atingir a liberdade de identidade, gênero e sexualidade socialmente almejada.
“Little Boxes”, dirigida por Thálita Motta, vem contrapor justamente com uma cena dedicada à emancipação da mulher em relação a coerções culturais. As cinco atrizes manejam clichês ainda impostos como ideais do feminino e constroem esquetes nas quais a padronização falha em reger esses corpos, por mais que eles tentem se adequar. As frases ditas pela metade dão conta dos quereres, deveres e poderes infligidos de fora para dentro ou silenciados. E os sapatos de salto alto são a imagem-fetiche desse modelo perfeccionista de beleza que relaciona diretamente o ser-mulher à satisfação do desejo, mesmo que o salto restrinja a movimentação dela, isto é, o seu agir sobre o mundo, literal e metaforicamente.
É notável a força do discurso feminista na cena belo-horizontina, sobretudo nos últimos dois anos. Nesse escopo, vemos distintos graus de empoderamento e desconstrução. O salto alto talvez já seja questão superada em “Calor na Bacurinha” ou “Rosa Choque”. “Little Boxes” percorre terreno conhecido enquanto cena e discurso, mas cuja relevância se afirma diante da reincidência característica do próprio conservadorismo.
Assim, a sororidade é representada no amparo à atriz que sucessivamente cai em meio ao corpo coletivo sincronizado que as atrizes formam. A competição entre mulheres, socialmente estimulada, é mostrada com humor. O retirar compulsivo de camadas de roupa para atender o imperativo da balança ou o recolher de bonecas caídas que indicia a maternidade compulsória, e o modo como os corpos delas se deformam para segurar o máximo possível desses bebês de plástico, são também potentes representações simbólicas que dão a ver esse imaginário naturalizado e, consequentemente, invisibilizado. Enxergar sua estranheza é base para a desconstrução. Então, a indagação que deixo a essas atrizes pode ser sintetizada na contenção do gesto final, que ameaça jogar os sapatos de salto contra a plateia: o que as impede?
“Um Dedinho de Amor” interrompe a discussão de gênero para trazer a público uma fábula de fundo psicológico, propondo um jogo com a plateia regido por uma espécie de paradoxo da representação realista contemporânea: quanto mais se persegue a sensação de não-representação, mais construída é cada ação em cena. Contudo, a representação dentro da representação rapidamente toma a forma do texto decorado, decorrente dos tempos de silêncio, vacilo e fala controlados.
A atriz e diretora Patrícia Oliveira adentra o espaço do palco instaurando uma relação convivial com os espectadores que os dota de um papel ficcional: o de participantes de uma sessão de terapia de grupo. Esse tipo de configuração cênica por vezes empregada para intensificar o caráter relacional do teatro, por meio do eixo extra-ficcional, aqui não desenvolve de fato a performance do espectador; mas o inclui, no nível do discurso, na composição da ficção, enquanto esta se mantém fechada na realização também discursiva da anedota sadomasoquista sobre uma relação entre mãe e filha.
Finalmente, “Cena Ruim” é o tipo de trabalho que coloca o espectador em um impasse de difícil resolução – eis sua potência desestabilizadora. Neste texto, deixo a questão metateatral de lado para tratar da relação entre estética e política. A barricada erguida com sacos coloca o espectador na posição do inimigo em uma guerra estético-discursiva cujo alvo parece ser a ingenuidade de discursos de esquerda correntes. Rir das tragédias recentes, como o atentado ao Charlie Hebdo e o desaparecimento de Amarildo, rir de um banho de sangue ou da Klu Klux Klan, a quais implicações éticas e políticas conduz?
Uma maneira de abordá-lo é pela aproximação com a sensibilidade camp, conceito importante nos estudos queer e sobre o qual Susan Sontag refletiu em um ensaio de 1964, definindo-o como o gosto pelo artifício, pelo exagero, pelo extravagante. Outro aspecto interessante observado pela crítica estadunidense é o transformar do sério em frívolo; em outras palavras, “destronar o sério”, reequacionando a relação de modo a “ser sério a respeito do frívolo, e frívola a respeito do sério”.
Sontag, contudo, apresenta o camp como apolítico. Sem discutir essa posição dela, o que não caberia no espaço desta crítica, é possível seguir outro caminho ao pensar a relação entre estética e política em “Cena Ruim”: a frivolidade como o debochar de uma sociedade superficial e idiotizada, a apontar para o absurdo de nossa ridicularia – Je suis Charlie Hebdo, Je suis Charlenne, Je suis ridicule.
Wester de Castro e os atores em cena acionam o artificial e o exagero kitsch contra o bom gosto moralista, higienizante e segregador. Propõem a demolição das categorias de bom e ruim, erudição e vulgaridade, esses supostos redutos do discernimento sobre a ação humana no mundo. É sempre interessante pensar do que se ri quando se ri. A força política do riso também pode vir dessa distância entre a reação automática ao jocoso e o incômodo que fica. Num festival que se deseja espaço para o risco e o erro, a desorientação provocada pela “Cena Ruim” encontra seu lugar.