Por Soraya Belusi
No início, era o texto. Soberano, ocupava lugar intocável no panteão das hierarquias teatrais. Depois, veio a cena. Esta, cansada de estar em segundo plano, assumiu o poder na virada para o século XX e tornou a palavra, antes inatingível, mais uma de suas servas. Algum tempo depois, foi a vez de um novo mandamento possuir o trono, o pós-dramático, aquele que rompe com a tradição do drama, cujo reino assume múltiplas facetas e possibilidades, aproxima-se do performativo, assume seu caráter processual e, muitas vezes, inacabado.
Essa definição sobre os embates na cena teatral do último século, breve e imprecisa, que não nos garante nenhuma espécie de porto seguro, é apenas um ponto de partida para nos aproximarmos de algumas das questões operadas em “Prazer”, mais recente espetáculo da Cia. Luna Lunera, que, após dois meses em cartaz em São Paulo, segue a temporada com apresentações na Mostra Oficial do Festival de Curitiba. À sua maneira, “Prazer” opera em sua construção com procedimentos e referências muito relevantes no que se convencionou chamar “teatro contemporâneo” (“pós-dramático”, “performativo”, etc), de questões, escolhas e tendências observadas em muitos trabalhos atuais.
Cláudio Dias, Isabela Paes, Marcelo Souza e Silva e Odilon Esteves formam o elenco de “Prazer” (Foto Adriano Bastos/Divulgação) |
Há uma herança forte da tradição do texto dramático em “Prazer”. Resumidamente, a “historinha” é assim: quatro amigos brasileiros se reencontram em um país indefinido e, juntos, irão descobrir suas limitações, revelar seus segredos, omitir seus desejos, compartilhar a existência. Existe uma situação muito bem delineada, personagens caracterizados, conflitos, encadeamento de ações de forma a criar um sentido lógico. Mas, ao mesmo tempo, essa linearidade é constantemente interrompida por cortes, estranhamentos, tornando-se fragmentada. É nesta coexistência que reside tanto a potência, mas também a fragilidade de “Prazer”.
Inspirada pelo universo de Clarice Lispector, notadamente por “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres”, a companhia assume um olhar diante da vida, e da arte, como “uma tentativa de buscar a alegria”. Aqui, alerta o grupo, não se trata de ingenuidade e, sim, coragem. “Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive, muitas vezes, é o próprio ‘apesar de’ que nos empurra para frente”, diz Ulisses a Lóri em certo trecho do livro. Assim como Lóri e seu percurso após o encontro com Ulisses são mostrados na obra da escritora, a Luna Lunera expõe em “Prazer” o seu percurso artístico, suas convicções.
Os personagens tentam iluminarem-se uns aos outros dentro dessa escuridão que é a alma e a existência humanas, espelham-se como se pudessem se enxergar refletidos no outro. Se num momento parecem assumir um naturalismo quase cotidiano, em outro, debatem-se com as palavras, correm delas, desviam-se para não serem derrubados. Personagens que se revelam muito mais pelas citações de Clarice que vez ou outra se incorporam ao diálogo do que pela sua própria fala.
A mesma palavra que sustenta as paredes e cria sentido parece, no momento seguinte, assumir um caráter poético, inalcançável, borra-se como o passado.
O mesmo acontece com o espaço que, sendo o mesmo, se desdobra em vários. Reprodução estilizada da sede da companhia, em Belo Horizonte, como acontece normalmente nos ensaios, torna-se um apartamento quando se puxa uma mesa que estava escondida na parede; vira carro se colocamos quatro cadeiras lado a lado; aeroporto se corremos de um lado para o outro ao som longínquo do avião. Mesmo com a permanência quase completa da quarta parede, de forma sutil, a metalinguagem está instalada. Assim como a comida, feita ali, em cena, de verdade. A intenção não é conferir o caráter de real, de ilusão, ao que se passa em cena; ao contrário. O pão de queijo terá seus ingredientes reunidos e assados diante do espectador, no tempo da encenação; ator e público compartilham o processo de sua feitura.
O caráter compartilhado da criação do grupo, no qual os próprios atores assumem também a direção e em grande parte a dramaturgia do espetáculo, confere, naturalmente ao processo, e consequentemente ao espetáculo, uma faceta polifônica, diversificada em discursos que muitas vezes se potencializam e, outras, confrontam-se ou se enfraquecem. Assim como a harmonia e a unidade, o choque e a tensão entre linguagens também está presente.
Além disso, as relações estabelecidas durante a criação, com residências com artistas como Roberta Carreri, do Odin Teatret, Mário Nascimento, Eder Santos e Jô Bilac, trouxeram ainda mais contribuições para o trabalho, comprovando a sua vocação para o performativo e para o multidisciplinar. Tudo isso está em cena, criando outras camadas de percepção, de sensação, de relação com o espectador, que se vê na condição de mediador entre esses diversos momentos. É ele que, no fim, munido de tantos caminhos, estabelece as conexões entre os opostos na encenação e escolhe para onde quer ir. Há frestas para que ele participe efetivamente deste encontro.