por Luciana Romagnolli
“Vazio é o que não falta, Miranda. Foto de Tháis Grechi. |
Entrevista com o carioca Diogo Liberano, dramaturgo de “Maravilhoso”, que se apresenta na Mostra Oficial do Festival de Curitiba, e diretor de “Vazio é o que não falta, Miranda”, levado pelo grupo Teatro Inominável ao Fringe.
Há pontos de contato, paralelos possíveis, entre “Maravilhoso” e “Vazio é o que não falta, Miranda”?
O único paralelo que vejo entre Maravilhoso e Vazio é o que não falta, Miranda diz respeito à origem dos projetos. Ambos foram criados a partir de uma obra marcante da dramaturgia universal. Em Maravilhoso, como dramaturgo, concebi um texto original – e em processo – tendo como principal estímulo a obra FAUSTO I de Goethe. Já em Miranda, junto à minha companhia – o Teatro Inominável – criamos o texto a partir do trabalho direto sobre a obra ESPERANDO GODOT de Samuel Beckett. Posso então afirmar que o ponto de partida – ter uma obra como referência inaugural – é o dado que mais estabelece uma relação entre as duas peças.
No caso de “Maravilhoso”, como foi seu envolvimento com a montagem? Era um texto pré-existente, foi escrito para a cena?
Maravilhoso me chegou enquanto ideia. O ator e produtor Paulo Verlings me convidou para escrever uma peça original que tivesse como pano de fundo, como mote inicial, o encontro da obra FAUSTO de Goethe com o universo do carnaval carioca. Além desses dois universos, Verlings também me trouxe a minissérie brasileira FILHOS DO CARNAVAL, como mais uma referência para estimular a criação da dramaturgia. A partir desse material, comecei uma pesquisa sobre as temáticas em jogo e fui montando – num trabalho de “correspondência” – uma peça que respondia diretamente aos acontecimentos do FAUSTO I de Goethe. A relação com a obra de Goethe, mais do que obrigação, foi utilizada como estímulo. Não se trata de corresponder ou de responder ao original, mas sim, de flertar com ele e abrir possibilidades novas para a dramaturgia. O processo em sala de ensaio começou em janeiro de 2013. Junto à diretora Inez Viana e aos atores, começamos os ensaios com um delineamento de cada personagem e com uma escaleta da dramaturgia (uma previsão daquilo que aconteceria em cada cena). Assim, semana a semana, eu ia entregando novas cenas e assistindo as cenas trabalhadas, num movimento muito interessante a meu ver, visto que a minha criação enquanto dramaturgo (para além das minhas ideias e do drama planejado) ia se afetando diretamente pelo corpo dos atores e pelo tom da encenação. Foi, de fato, uma dramaturgia em processo.
O Teatro Inominável esteve no ano passado no Fringe com “Sinfonia Sonho” e agora volta. Em que a experiência foi mais positiva para o grupo?
O Fringe foi muito importante para o Teatro Inominável porque nos apresentou como companhia para novos públicos, críticos e jornalistas. O nosso trabalho é feito para o outro e ter essa troca é de extrema importância para validar nossa pesquisa e o sentido de nossa profissão. Apesar de todo o trabalho e dos custos (pagamento pelas apresentações no Festival, hospedagem de elenco e equipe, transporte do cenário, alimentação e viagem), quando decidimos ir ao Fringe, sabíamos que a experiência poderia ser especial, mas que nada estaria garantido. Foi um caso mesmo de arriscar. Escolhemos isso. E, para a nossa satisfação, o encontro de SINFONIA SONHO com o público do Festival e, sobretudo, com a imprensa (creio que em sua maior parte, convidada pelo próprio Festival) foi determinante. Seguimos até hoje nos apresentando em outras cidades e sempre somos lembrados pela nossa passagem no Fringe. É um espaço especial para se arriscar, sobretudo em se falando de novos grupos e companhias. Apresentamos nosso espetáculo para inúmeros jornalistas e críticos, aumentando a chegada da nossa obra a mais e mais pessoas. Por isso decidimos voltar neste ano, para participar da mostra Fringe (provavelmente será a última vez que faremos isso). Com MIRANDA, esperamos nos encontrar novamente com toda a diferença de público que o Festival nos apresentou. Mas, assim como antes, é novamente um arriscar-se.
“Maravilhoso”. |
“Vazio é o que não falta, Miranda” se apresenta como uma tentativa de montar “Esperando Godot”, da qual sobressaem as questões do erro e da falta. Que perspectivas de Beckett e de linguagem teatral regem essa “montagem”?
Miranda é uma tentativa de montar ESPERANDO GODOT porque é o saldo do nosso processo de tentar encenar essa peça. Começamos o processo em 2010, montando ESPERANDO GODOT. Porém, durante o processo, fomos destruindo a obra de Beckett ao confronta-la com a nossa realidade, com o fluxo de nossa época. Quero dizer: para nós, a lógica da espera, tal qual apresentada por Beckett, era desinteressante. Percebemos que nós, hoje em dia, desaprendemos a esperar e buscamos, custe o que custar, a plena satisfação de nossos desejos. Sendo assim, esperar Godot não faria mais tanto sentido. Optamos então por desesperar Godot, por inverter o sentido da espera e, assim, de alguma forma, atualizar o texto original. Ou seja: em se falando de espera hoje, a obra de Beckett ainda nos diria algo? Seria capaz de dar um retrato de nossa época? O original de Beckett é uma obra marcante da dramaturgia universal, representando os estragos da Segunda Guerra Mundial. Apresenta o homem como um ser incompleto e sempre à espera, partido e ansioso por completude. A obra anuncia o vazio da existência numa parábola do homem pós-guerra. No entanto, em nossa montagem, a angústia existencial desses personagens não encontrou eco em nosso corpo. Percebemos que tentar dar espaço a esses dramas acabou nos abrindo um drama ainda mais sincero: que era justamente o drama de tentar dar conta da ficção de Beckett. Ao invés da angústia existencial (dos mendigos de Beckett), nos prendemos a angústia criacional (das quatro atrizes e minha, enquanto diretor). Miranda, no final das contas, nos devolveu ao GODOT de Beckett. É a nossa forma de ler a obra, independente do lugar para o qual se destina e/ou chega. Não importa chegar, não importa dar certo. Dizemos que Miranda é o nosso pior. E achamos importante compartilhar com o público o que temos de pior. É uma aceitação irrevogável de uma série de palavras que consideramos problema (como erro, boicote, falta, vazio…). Descobrimos, com esse espetáculo, a nossa fome e dependência por completude, ao mesmo tempo em que descobrimos o vazio como parte nossa, como parte constituinte do ser humano. Por isso é que vazio é o que não falta. E está tudo certo com essa afirmação. Nosso projeto nos fez amar o vazio, o terror, a desorientação e a dificuldade. Como artistas, como uma companhia de teatro, isso nos foi imprescindível. Miranda é a obra que mais nos diz (porque se atualiza a todo o momento, estando sempre presa ao aqui e ao agora).
Li no blog do espetáculo que ele os teria feito “descobrir a performance enquanto ficção”. O que isso significa?
Começamos o processo em sala de ensaio no inicio de 2010. Estreamos em julho deste ano e cumprimos duas temporadas, uma em setembro e outra em dezembro de 2010. Em 2011, segui estudando a peça como objeto de análise dentro de uma pesquisa desenvolvida dentro da UFRJ com orientação da professora e artista plástica Livia Flores. Em 2012, fomos chamados a ocupar a sede da Cia. dos Atores, realizando a terceira temporada. E no segundo semestre, participamos da Mostra Hífen de Pesquisa-Cena, realizando a quarta temporada exatamente dois anos depois da estreia. Escrevo sobre a nossa trajetória porque a cada temporada aprendemos mais sobre a peça e entendemos mais do que ela é feita e de como se manifesta. Ou seja: sua expressão ainda é um mistério e faz parte de Miranda a dificuldade em prender, segurar, fechar, firmar, entender… Por isso, nas duas últimas temporadas, em 2012, entendemos entre nós que Miranda é menos peça de teatro e mais performance. Não que essas classificações importem, mas, conceitualmente, nos limitam e libertam ainda mais. Quero dizer: o nosso referencial de performance é menos da sala preta e mais da vida (são artistas inúmeros que fazem de seu próprio corpo a obra, o protesto, o sentido…). A performance começa em você, no corpo do performer, e tal como ela, nosso espetáculo foi cada vez mais solicitando às atrizes a doação completa do seu corpo e da sua presença. No entanto, queríamos ainda contar aquela história, apresentar aquela situação primeira (das atrizes e do diretor tentando encenar a obra de Beckett). Nesse sentido, nos vimos num paradoxo: queríamos o nosso corpo e a nossa voz, mas tínhamos que inseri-los numa ficção, numa peça, com outras falas e opiniões que não somente as nossas. Nesse sentido, fomos assimilando que a presença que a linguagem da performance pode trazer ao ator poderia também ser usada num palco, dentro da estrutura dramática de uma ficção, de uma dramaturgia. Para além do corpo, da fala, a performance é uma força que presentifica aquele que se dispõe a estar. Por isso dizemos que a peça nos fez descobrir a performance enquanto ficção. Porque mesmo tendo um espetáculo com texto fechado, encontramos diferenças a cada apresentação, por conta da presença honesta e radical que o trabalho com a performance foi capaz de nos dar. Qualquer ficção, qualquer mentira ou invenção pode ser sincera, desde que expressada por um corpo que se disponha à sinceridade do encontro.
Diogo Liberano em foto retirada de seu blog. |