Marcelo Castro, Grace Passô e Gustavo Bones em “O Líquido Tátil”. Foto de Guto Muniz. |
por Luciana Romagnolli
Entrevista com Gustavo Bones, ator do Espanca!, com quem apresenta “O Líquido Tátil” na Mostra Principal do Festival de Curitiba, e integrante do coletivo Paisagens Poéticas, pelo qual dirige “A Noite Devora Seus Fillhos”, que vai ao festival pela mostra mineira Teatro para Ver de Perto. Ambos são textos do dramaturgo argentino Daniel Veronese. Com a palavra, Gustavo:
Lembro de uma palestra do Veronese que assisti no Ecum, que me marcou muito, quando ele ainda estava no Periféricos. Sua fala sobre teatro, sobre a relação com o espectador e com os elementos da cena tinha uma visceralidade, uma violência, uma “atualidade” impressionantes (este vídeo foi recentemente disponibilizado na internet pelo Ecum). Depois disso, assisti vários espetáculos do Veronese, entrevistas, li textos dele (dramáticos ou não) – e sempre mantive uma enorme admiração por seu trabalho como diretor e dramaturgo. Desde antes do espanca existir, eu, Grace e Marcelo já alimentávamos um “sonho impossível” de algum dia, no futuro, trabalhar com Veronese, que consideramos um grande nome do teatro mundial, uma referência muito importante para nós e, acredito, para nossa geração.
Em 2008 eu estive em Buenos Aires e comprei toda a obra publicada dele. No meio desses livros estavam “A Noite Devora Seus Filhos” e “O Líquido Tátil”. Eu estava procurando um texto, um tema, um norte para fazer um trabalho com a Renata Cabral e propus a ela que fizéssemos um exercício sobre A Noite…, um texto que me emocionou muitíssimo. Então eu comecei a traduzir e adaptar o texto para um exercício cênico, que criamos ao longo de 2009, junto com a Mariana Maioline e o Alexandre de Sena.
Neste mesmo ano, enquanto eu estava envolvido com a criação deste exercício, o espanca! pensava numa montagem e decidimos apostar num projeto “grandioso”, que fosse a coisa mais “ousada”, mais “desejada” que poderíamos imaginar. Ficamos muito surpresos quando Veronese aceitou o convite de um grupo brasileiro desconhecido, do chamado “circuito alternativo”. Quando este projeto começou a virar realidade, foi o Veronese quem nos indicou “O Líquido Tátil” ao saber que seríamos 2 atores e 1 atriz em cena. Em 2011 eu fiz a tradução do texto, que nós lemos no final do ano, num Encontro que o espanca! organizou sobre a obra do Veronese. Havia um desejo de chamarmos artistas de BH para fazerem leituras de textos dele, uma forma de nos aproximarmos deste universo. Então eu propus de retomarmos o exercício sobre A Noite… para este Encontro, dessa vez com a presença da Gláucia Vandeveld e do Jésus Lataliza. Veronese esteve 2 dias em BH, foi o primeiro encontro dele com o espanca (tem mais informações sobre o “Encontro Tátil” no site do espanca!, como parte do processo do Líquido). Depois disso, passamos um mês criando o espetáculo em seu estúdio, em Buenos Aires, e estreamos o Líquido em setembro do ano passado; e logo depois, embalados pela leitura que fizemos no Encontro, decidimos transformar o exercício no espetáculo A Noite Devora Seus Filhos, que estreou no mesmo mês, em BH.
Então estes projetos (O Líquido e A Noite) surgiram juntos, um é consequência do outro, um se alimentou do outro, ambos são sonhos antigos, mas não sei qual deles veio “primeiro”.
Ufa. Dito isso, vou tentar responder as perguntas:
Enquanto trabalhava em O Líquido Tátil, você escolheu o texto A Noite Devora seus Filhos, traduziu-o e concebeu, com outras pessoas, a montagem. Gostaria que traçasse os paralelos que você vê entre esses dois textos e falasse do que os diferencia em termos de linguagem, visão de teatro e de mundo. “A Noite…” fala mais diretamente às suas questões éticas e estéticas?
Traduzir um texto é mergulhar no autor, tentar compreender suas intenções, suas contradições, seus sentidos – e até seus “lapsos de sentido”, para tentar redimensionar estas palavras. Durante o Encontro Tátil, à medida que as leituras foram acontecendo, lembro como tive a sensação de estar me aproximando intimamente da obra do Veronese. Comecei a perceber ligações, inclusive um “universo semântico” comum, palavras que se repetiam, construções frasais, etc. Isso te dá outra dimensão sobre a obra de um autor.
Acredito que “O Líquido Tátil” é um texto mais “espetacular”. Explico: ele precisa ser encenado para ser apreendido. Ele necessita da ação, do jogo da cena para comunicar. Antes de começar a criar o espetáculo, lembro que nós nos perguntávamos “mas o que o Veronese está querendo dizer com isso?” ou “mas final de contas, o que esse texto quer dizer?”. Essas respostas vieram quando a cena foi se construindo. Nós, atores do espetáculo e público presente, dependemos da cena para nos apropriar do texto. Um texto aparentemente banal, aparentemente vazio, aparentemente sem sentido, gerou um espetáculo cheio de camadas, mistérios, questões, discussões, através da ação dos atores no espaço, ou seja, através do teatro. E como este texto só existe para ser uma peça de teatro, ele carrega isso tudo em si.
“A Noite Devora Seus Filhos” é um texto mais “literário”. Quero dizer, ele é extremamente potente no papel. As imagens, as narrativas, a poética… A experiência de lê-lo, em silêncio, sozinho, é extremamente bela. Neste sentido, não é um texto de teatro, é um livro de literatura. Talvez por isso Veronese o tenha chamado de antiteatral, como você lembrou, porque o texto independe da cena para existir como obra. Ele me disse que nunca montou essa peça, que esta é a primeira montagem feita do texto.
Tem uma coisa que gosto muito nos textos do Veronese, que é a forma como ele cria narrativas. O texto teatral vai se desenrolando (às vezes em diálogos) e habilmente, ele coloca a descrição de um acontecimento, de uma imagem ou de uma situação – e as opções que ele faz para inserir isso na história são muito maduras. Acho que isso é uma coisa que aproxima os 2 textos. O Líquido é um espetáculo irônico e surreal. A Noite é uma contação de histórias. Os espetáculos são muito diferentes (e agora falo das peças e não dos textos) mas ambos trazem visceralidade e violência, numa construção textual extremamente cuidadosa e inteligente.
“A Noite Devora seus Filhos”. Foto de Guto Muniz. |
Veronese chama “A Noite…” de texto antiteatral e sob perigo de cair em uma armadilha demasiado enunciativa na direção. Na versão do Paisagens Poéticas, a narrativa de fato é muito presente, contudo, contrasta com a exposição da construção da cena, reafirmando o fazer teatral. Você pode comentar as escolhas por duas atrizes e por essa construção aparente expondo mecanismos da cena?
Como eu disse, o texto da Noite é uma grande narrativa, uma contação de histórias. Nós precisávamos encontrar um fio para sustentar uma ação dramática. Então optamos por fazer, paralelamente ao desenrolar da narrativa textual, uma construção no espaço que fosse também uma metáfora do que o texto trata. Resumindo, o texto é um emaranhado de histórias, cheias de detalhes e imagens poéticas, que termina por revelar o abuso sexual de uma criança. Assim como a narradora-personagem revela aos poucos sua história, a encenação constrói aos poucos um espaço íntimo para, ao final, mostrar também a violação deste espaço.
O texto do Veronese não tem rubricas, não tem divisão de cenas, nem apresenta um personagem. O texto é apenas uma voz feminina que conta essas histórias. Como ele fala da relação desta criança com sua mãe – a mulher que ensinou essas histórias e disse à filha que as preservasse, optamos por fazer a peça com duas atrizes, com idades diferentes. Assim, elas podem ser ora mãe e filha, ora a mesma pessoa em tempos diferentes, passado e presente sobrepostos. Isso nos ajudou também a quebrar a estrutura rígida de um monólogo, sem a possibilidade da contracena.
Uma palavra que salta do texto é “inenarrável”. Você sente necessidade de repensar eticamente as formas de representação da tragédia hoje em dia?
Essa palavra, inenarrável, é mesmo marcante. E o mais bonito é que a personagem está exatamente narrando quando diz isso. Ela diz que algo é indizível enquanto tenta fazê-lo, e a peça é exatamente sobre essa tentativa. Pensamos muito em maneiras, estratégias, formas de narrar enquanto criamos a peça. Particularmente, tenho pensado muito nisso, em como narrar. O que faz uma narrativa ser interessante, instigante, forte, nas técnicas (muitas vezes intuitivas) que usamos para contar uma história. Há tempos tenho vontade de fazer um exercício utilizando os textos dos mensageiros das tragédias gregas, eles que eram personagens que entravam para narrar um acontecimento da história que o público não viu… Essa história do ator-narrador não é uma novidade no teatro, né? Tenho também um gosto pessoal pelo drama. Gosto desse desafio de dramatizar a cena. É uma investigação: pensar num drama contemporâneo que inclui crítica, quebras, absurdo e todos os recursos que o teatro contemporâneo inventou.
Em Curitiba, haverá além de O Líquido Tátil e A Noite…, uma montagem de Circo Negro, texto de Veronese da época do Manifesto de Objetos. Você que conviveu com ele por ao menos um mês, conseguiria comentar a ruptura de pensamento que representou a saída dele do grupo?
O Periféricos de Objetos marcou o teatro. A histórica montagem de Hamlet Machine (que só assisti em vídeo) lançou o “novo-teatro argentino”, misturando manipulação de objetos, atuação performática, novas tecnologias e muitos efeitos visuais. Veronese começou como marionetista, antes de ser diretor e dramaturgo, construía bonecos numa oficina. Acho que, uma vez bonequeiro, foi assim que ele começou a pensar o teatro, como um serralheiro. Então, naturalmente, acho que ele foi se “apropriando” do teatro. Veronese nos disse que depois dos bonecos, começou a se interessar pelo trabalho do ator, que se desligou do Periféricos para se debruçar sobre a atuação – e essa situação síntese do teatro: o ator e o espaço. Neste sentido, foi despindo seu trabalho de artifícios, de truques, “secando” seu teatro. No último encontro com Veronese, perguntei a ele qual teria sido a principal contribuição de seu trabalho para o teatro argentino (e para o teatro). Ele me respondeu “radicalidade e síntese”. Acho que foi nesse sentido que seu trabalho caminhou.