por Luciana Romagnolli
Olhando agora com algum distanciamento, qual a sua percepção sobre a cena mineira projetada na década passada a partir do Festival de Curitiba? O que aconteceu naquele momento que levou grupos como o Espanca!, a Cia. Clara e o Luna Lunera à atenção nacional? Faz sentido, como já se disse, falar de uma estética do afeto como linguagem comum?
Sinto que essa geração em Belo Horizonte – e essas companhias especificamente – radicalizaram a noção de propriedade de discurso, o fato de que era necessário criar uma perspectiva própria e autoral na peça teatral. É claro que essa posição gerou trabalhos extremamente originais. Não só pela perspectiva afetiva, que existe em vários outros. Enxergo um desejo de rever códigos do acontecimento teatral e de criar seu próprio texto, como na radicalidade colaborativa do Luna em “Aqueles Dois”, um trabalho primoroso. O que espanta certa crítica de teatro é descobrir que isso existe fora de São Paulo, em lugares até de um teatro menos acadêmico. A faculdade de artes cênicas em Belo Horizonte tem menos de 15 anos. Em São Paulo, há um universo teatral construído pela academia, é um pensamento muito presente. Essa crítica se espanta de enxergar que existe outro teatro, tão elaborado quanto, mas de uma forma diferente, fora de São Paulo.
Contribuiu também uma relação mais próxima estabelecida com o público?
Se pensarmos nessas companhias, existe uma questão relacionada à natureza da interatividade: o desejo explícito de que uma peça de teatro seja um encontro e que revele muito mais o público que os próprios autores; que esses códigos não sufoquem o desejo primeiro de dialogar de uma forma sensível com a plateia e de quebrar a convenção do lugar da plateia e do lugar da cena. O lugar de cada um esconde muitas vezes uma máquina fria. E há de se correr atrás para entender formas de aproximação e diálogo em todos os pontos de vista: atuação, dramaturgia, elaboração do espaço.
“Por Elise” se tornou um espetáculo estimado pelo público. Isso lançou expectativas para que os trabalhos seguintes do Espanca! seguissem os mesmos padrões?
Coletivos ou companhias cujos primeiros trabalhos têm uma repercussão grande correm o risco de não viverem um amadurecimento profissional e de linguagem. “Por Elise” foi tomando essa dimensão e a gente criou uma vigília particular para que isso não nos impedisse de querer alcançar outros lugares e fazer outros trabalhos. Acontece uma pressão, sim. O mais importante é o posicionamento em relação a ela. O que me dá vontade de criar, particularmente, é a possibilidade de encontrar outros lugares.
E como vê os rumos que esses grupos tomaram, como se desenvolveram?
Esses grupos passaram a procurar novas possibilidades de linguagem cênica, novas formas de interagir com o público. Tenho essa sensação de que estão o tempo todo lutando contra a elaboração de um método específico, contra um fechamento do seu trabalho.
O dramaturgo e diretor Vinícius Souza, da Cia. do Chá, já contou que se envolveu com teatro depois de assistir a um espetáculo do Espanca!. Você percebe questões levantadas por vocês influenciarem criadores mais jovens de Belo Horizonte?
Percebo sim. Vejo vários artistas tratarem de gêneros extremamente diferentes numa mesma peça – são cômicas e trágicas ao mesmo tempo. A gente mostrou uma maneira de isso ser feito. Assisto a muitas peças em que as pessoas escrevem seus próprios textos. E vejo um desejo de construir histórias. Essa geração nova, que quer implodir certas tradições do teatro, percebeu que é possível contar uma história de forma contemporânea. Quem cria peças luta contra uma concepção do teatro como algo velho e essencialmente ligado a uma burguesia específica ou a certa elite cultural. A contribuição desses grupos foi também com uma nova noção de arte popular. Existe uma elaboração que está a serviço não da academia, mas do novo encontro com o público. De formas diferentes, por terem incorporados dispositivos e referências da arte contemporânea, reelaboram essa noção de ir ao teatro e o desejo de viver uma experiência.
Qual o prazer de contar uma história?
Ando pensando nisto: quero muito fazer uma das próximas peças sem contar uma história, porque o que me move é entender o que é viver sem determinadas coisas nas quais me apoio para criar. Mas eu sou uma apaixonada por histórias do dia a dia. Viajo nelas, é uma realidade infantil que vivo até hoje. A verdade é que eu levo a sério qualquer história de bar. Quando começo a escrever uma, ela rapidamente se impõe com muita verossimilhança. Não tenho atração pelas absurdas, como muita gente acha. Já vieram me contar que tem uma casa onde se cria um hipopótamo de verdade… (como em sua peça “Amores Surdos”). Não é a sensação de que isso acontece na vida real que me dá prazer e, sim, ter que criar uma narrativa e manter o nível de interesse dela o tempo inteiro.
Você costuma buscar uma metáfora que sintetize a história?
Se eu me atraio por alguma situação, é porque ela em si já diz alguma coisa. Por exemplo, falar de família para mim é sempre muito forte, então vou buscar imagens e situações que sejam tão fortes quanto esses temas me inspiram. A força dessas situações, num primeiro momento, é muito maior do que necessariamente essa metáfora cria como discurso.
A sua família, como é? Tipicamente mineira?
Minha família é do interior. Tenho uma mãe, não tenho pai e tenho seis irmãos. É bem essa história da família brasileira da classe operária, num período em que as pessoas tiveram muitos filhos. Havia toda uma luta para que estudassem e era preciso ralar muito para construir alguma coisa. Minha família acompanhou essa transição do país em todos os níveis: a decadência do funcionalismo público; sair do interior e vir para a capital; até chegar a uma estabilidade. É mais brasileira que mineira, não é religiosa.
Recentemente, o seu grupo trabalhou com um diretor de fora, o argentino Daniel Veronese, em “O Líquido Tátil”, e você saiu para dirigir outros dois grupos, o Lume (“Os Bem Intencionados”) e o Teatro Invertido (“Os Ancestrais”). Como isso afeta o Espanca!?
O que eu mais gosto do Espanca! é esse desejo de recriação da forma de trabalhar e de com quem. Cada peça vira um projeto que desafia a linguagem, muda a forma de se elaborar e as pessoas que trabalham nele.
Do Veronese, o que fica no Espanca!?
Foi um trabalho positivamente simples, fomos com o texto decorado e voltamos verdes para continuar sozinhos. Se eu ouvisse isso antes de passar pela experiência, poderia olhar para esse formato com preconceito. O que fica para mim é que a pesquisa do teatro pode ocorrer de múltiplas formas. Posso ficar, como nos “Ancestrais”, um ano dentro da sala de ensaio, periodicamente, e partir de práticas do corpo extremamente sofisticadas, mas também posso criar uma peça de um texto já elaborado, num período mais curto de tempo. A pesquisa está ligada à trajetória pessoal do artista ao longo da vida e não necessariamente durante o processo de um trabalho específico. Ter vivido um mês com o Veronese me trouxe pensamentos sobre a velocidade da ação e da fala; o sintetismo da narrativa e das informações que ele passa aos atores. Coisas com as quais que eu sinceramente já vinha trabalhando, mas às quais a radicalidade portenha dele imprime uma identidade muito forte.
“Os Bem-Intencionados”, com o grupo Lume. Foto de Alessandro Soave. |
O Lume e o Teatro Invertido são grupos com trajetórias e pesquisas bastante distintas. Em que te dizem respeito?
Os dois grupos mergulham radicalmente no universo da linguagem corporal. Mas o Invertido tem esse desejo do processo colaborativo em todos os trabalhos. No Lume, isso se dá de forma diferente, é um grupo que funda no Brasil um pensamento do teatro físico. Todos os grupos com que eu trabalho estavam no momento de viver algo diferente. Eles têm em comum o desejo de se refundar. Isso tem a ver com a minha geração: quando pessoas como eu começam a escrever, é de modo autodidata. Existe uma forma de criação que é fruto de aprendizados da minha vida artística e estão muito distantes de um método pré-elaborado por outras pessoas. Quando métodos da linguagem teatral entram em colapso nessas companhias, seja por cansaço ou esgotamento, elas sentem que esse autodidatismo pode trazer uma vida ao método. O Lume parte sempre de uma técnica para criar um espetáculo, então eu dei uma oficina para eles entenderem que eu descubro a técnica no meio do processo. Essa é a raiz desse autodidatismo. Claro, exige muito estudo particular.
O argumento de “Os Ancestrais” é antigo. Você ampliou o texto em contato com o Invertido?
Eu o escrevi na época do “Por Elise” e apresentei os dois para o meu grupo que estava se formando, o Espanca!. Ambos tinham mais ou menos 12 páginas. Já era essa história, mas muito menor e com um personagem a menos. Os personagens mudaram porque os atores e outras coisas mudaram. Escrevi antes de “Amores Surdos”, tanto que é possível ver algumas ligações desse tipo de família.
A peça aborda questões econômicas, sociais e políticas relativas à posse de terra. Na reescrita, você absorveu acontecimentos recentes do contexto urbano?
Parti de um desejo de maior acidez na poética, que antes não tinha. A matéria de “Os Ancestrais” é dura. Talvez nos outros espetáculos fosse mais doce. Criei a situação dessa família soterrada antes dessa onda de desastres, de pessoas que perdem suas casas. Não estava tão em voga ou pelo menos a imprensa não cobria de forma tão visível. Essa peça é uma tragédia brasileira extremamente atual. A quantidade de pessoas desalojadas por eventos como a Copa; outras que vivem em áreas de risco. A propriedade de terra no Brasil é uma coisa completamente injusta. Nem mesmo com a esquerda no poder conseguiu-se fazer uma reforma agrária sequer. A gente ainda vive resquícios de um país colonizado, que começou como capitanias hereditárias. Quem é o dono da terra? Não os brasileiros.
Está ali uma série de questões, uma família brasileira dessas que constroem sua própria casa, que se reúnem no fim de semana para levantar a parede de um cômodo novo e que hoje estão se tornando classe média. Esses personagens ficam gritando ali e as precariedades os colocam como vítimas de algo muito maior. No final, o que acho mais interessante, eles têm uma noção maior do que vivem.
Como a sua direção trabalha em conjunto com os preparadores de voz e corpo e interfere no movimento?
Eles queriam partir de exercícios corporais. Eu apresentei esse texto para a Kenia Dias e o Cristiano Peixoto e falei sobre a grande dificuldade dessa história. Esses dois começaram a elaborar exercícios focados em movimentos corporais e na voz, e eu pontualmente vinha em alguns dias dessas oficinas e só observava. Observei muito e, a partir dessa observação, eu ia tomando posições. Por exemplo, eles fizeram exercícios em que se locomoviam pela casa sempre em coro, vi que estavam trabalhando muito em plano baixo, porque a Kenia parte do corpo que também desaba, não só a casa. Gostei dessa possibilidade do plano baixo, por muito tempo eles se locomoveram assim, juntos, pela informação do cabelo [os filhos estão inicialmente atados aos cabelos da mãe], e eu fui coletando imagens e dissecando o que dali poderia potencializar as relações entre eles. Ao mesmo tempo em que tem muitas imagens, existe uma lógica que a narrativa vai criando e a gente precisa dar conta dela também. Nesse sentido, no fundo, são histórias muito novas. A sensação que eu tenho é que a gente tem que elaborar uma verossimilhança para elas do ponto de vista da atuação. É diferente de chegar na sala do Veronese – é claro que tenho de fazer ali uma recorte muito mais próximo do cotidiano, por isso encosta no realismo. Agora, quando parte para essa fábula, esse universo que é sonho e realidade ao mesmo tempo, a sensação que eu tenho é que a atuação tem que recriar mesmo a sua verossimilhança, porque existe sempre uma negociação muito difícil entre a realidade, referências do cotidiano e algo que é extremamente surreal. As duas coisas coexistem ali, esse textos trazem uma questão para a atuação que é como fazer isso crível. Acho que foi o trabalho de maior pesquisa corporal e vocal que eu a fiz. O texto é muito impositivo, então, como deixar as sensações serem do mesmo nível?
O Espanca! vai lançar livros com suas quatro primeiras em abril, no Sesc Pompeia. O panorama de publicações de teatro no país se mostra mais promissor?
Está mais promissor, mas ainda é extremamente escassa a publicação de peças de teatro. A venda de livros de dramaturgia contemporânea brasileira ocorre mesmo no final das apresentações. A educação do país de modo geral não agrega dramaturgia como gênero relevante. Até hoje, as pessoas acham que dramaturgos são só Shakespeare e Nelson Rodrigues – e mesmo assim não os leram. Graças à iniciativa dos próprios artistas, algumas editoras têm se mobilizado. E as companhias têm lançado livros via leis de incentivo ou por si só. O tanto de gente que lê esses textos e vem dizer que não sabia que haveria rubricas conversando com o leitor nem outros elementos contemporâneos! As editoras têm muito mais chance de ganhar público com a dramaturgia contemporânea do que com essa aí já publicada. E nós temos que descobrir ainda mais o que é essa dramaturgia contemporânea brasileira. Falta muito para a gente ousar nessa forma. Mas já vejo muitas coisas boas e surpreendentes.
Quais, por exemplo?
O Byron O’Neill está iniciando um processo de vida dramatúrgica extremamente potente em Belo Horizonte. No Rio de Janeiro, o Diogo Liberano, pelo nível de elaboração de “Sinfonia Sonho”. Um monte de dramaturgos começou a escrever a partir do curso do Roberto Alvim em Curitiba. O Andrew Noll acaba de montar um texto lindo no Club Noir, o Luiz Felipe Leprevost, o Diego Fortes… essa turma tem um desejo de ser extremamente inquieto com as formas convencionais da dramaturgia. No Nordeste, todos os integrantes do Magiluth acabam elaborando dramaturgias bem complexas. Do mesmo modo, cito o Grupo XIX e a Cia. Brasileira, que trabalha com textos estrangeiros, mas faz uma incorporação da nossa identidade.
*Depois do Festival de Curitiba, “Os Ancestrais” se apresenta em São Paulo no dia 18 de abril, pela Mostra Latino-Americana de Teatro, produzida pela Cooperativa Paulista de Teatro.