— por Daniel Toledo —
Crítica do espetáculo “Condomínio Nova Era”, d’A Digna Companhia (SP).
Seja em São Paulo, Natal, Belo Horizonte ou qualquer outra grande cidade brasileira, são bastante claros e expressivos os efeitos da especulação imobiliária sobre o direito à moradia, garantido pela Constituição de 1988 a todos nós. Diante de um contexto político e econômico que favorece a concentração de terrenos e imóveis nas mãos de poucos, não é de se estranhar o crescente número de moradores de rua nessas cidades, assim como o grande contingente de pessoas que precisam se submeter a condições de moradia que em muito se diferem das estipuladas pela nossa Constituição.
Interessado em explorar essa contradição nacional e inspirado pela experiência de viver durantes alguns meses em uma precária pensão no centro de São Paulo, o dramaturgo Victor Nóvoa escreveu, em 2013, a peça “Condomínio Nova Era”. Montada no ano seguinte por A Digna Companhia, da qual o autor faz parte, a peça tem direção de Rogério Tarifa, trazendo alguns cortes e acréscimos em relação ao texto original.
Conduzida por seis personagens que tocam suas vidas em um mesmo edifício, a montagem convida o público a acompanhá-los nos momentos que antecedem a desocupação do prédio, após a compra do terreno por uma grande construtora. Como em uma visita aos últimos instantes dessa pequena comunidade, conhecemos cada um dos personagens em seus improvisados ambientes de vida, construídos ante os olhos do público a partir de tapumes, tecidos, antigos eletrodomésticos e incontáveis objetos que inundam a cena. Já se estabelece, a partir de então, um contraste entre o excesso visual que permeia a encenação e a escassez de recursos sugerida pelo contexto que lhe serve como inspiração.
Combinando monólogos direcionados ao público e cenas dramáticas realizadas por duplas de atores, a primeira parte do espetáculo nos oferece retratos mais ou menos breves de cada um dos personagens, suas aspirações e condições de vida. Certo tom de lamento predomina entre os relatos, aos poucos contaminando as relações entre atores e público. Apresentados como fracos, frustrados e fracassados, os personagens pouco deixam ver outras qualidades que poderiam surgir como contraponto e lhes atribuir a devida complexidade. Lançando mão de personagens bastante típicos, tais quais o homem violento, a mulher submissa e o homossexual cômico, o desenvolvimento da história lhes reserva poucas surpresas, como se negasse a possibilidade de transformação e ressignificação da existência.
Às vezes tratados como moradores ou visitantes do condomínio, outras, como se uma quarta parede nos separasse da cena, testemunhamos, num segundo momento da montagem, o acréscimo de um terceiro caminho de fruição. Ao serem informados de que serão despejados do edifício, os personagens se reúnem em um mesmo espaço e de algum modo se mesclam aos seus intérpretes, oferecendo ao público discursos críticos que tratam, entre outras coisas, de opressões de gênero e classe. A esses discursos é adicionada ainda a voz do próprio diretor do espetáculo, que irrompe a encenação para expor ao público dilemas e questões relativos à prática artística.
Chegamos, aí, à última parte do espetáculo, quando um novo personagem passa a mobilizar a história. Representando os interesses do capital sobre a cidade, trata de forma escarnecedora os moradores do condomínio, acrescentando mais um tipo conhecido à alegórica paisagem social construída pela encenação. Num embate em que a raiva e a violência se sobrepõem a outras possibilidades de relação, testemunhamos mais um momento de excessos, no qual uma sucessão de casos de violência são, como numa lista, textualmente apresentados ao público. O excesso visual contamina, então, o próprio texto da peça, deixando pouco espaço simbólico a ser percorrido pelo espectador.
Talvez por reunir, em cena, um excesso de elementos, imagens e discussões, o espetáculo “Condomínio Nova Era” acaba, em alguns momentos, apenas reproduzindo uma situação que visava criticar. Apesar de oferecer ao público uma experiência teatral ousada e repleta de singularidades estéticas, o trabalho parece encontrar limites ao propôr situações e personagens demasiado estereotipados, enfraquecendo seu diálogo com o contexto contemporâneo e os deslocamentos políticos que o caracterizam. Apoiando-se em tipos conhecidos, assim como em uma visão excessivamente dicotômica sobre o conflito que lhe serve como eixo, deixa dúvidas sobre a capacidade de desestabilizar uma visão simplista em relação ao relevante e complexo fenômeno social que se propõe a problematizar.
(Texto escrito no âmbito da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Críticos para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.)