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Reflexões a partir do espetáculo Nebulosa de Baco, da Cia. Stavis-Damaceno (Curitiba), assistido nos dias 05 de fevereiro e 09 de março de 2025, respectivamente no CCBB Brasília e no CCBB Belo Horizonte.
Por Julia Guimarães[1]
Criado pela Cia. Stavis-Damaceno (PR) e em temporada no CCBB BH até 31 de março, Nebulosa de Baco é um espetáculo de muitas camadas. Em uma delas, existe a pergunta sobre o fundamento da verdade: como saber quem realmente está com ela? Em outra, surgem distintos paradoxos sobre a representação teatral: quando uma personagem chora em cena, o choro é também de quem atua? Já em uma terceira camada, aparecem reflexões sobre violência de gênero: quais são as estratégias “teatrais” usadas para deslegitimar a narrativa de uma mulher que foi abusada sexualmente? E, em sentido dialético, outra vertente aborda os riscos dos julgamentos precipitados.
É no entrelaçamento dessas diferentes perspectivas que o espetáculo encontra sua maior potencialidade e também certa limitação. Isso porque a discussão sobre verdade tecida na dramaturgia – e inspirada na obra do escritor italiano Luigi Pirandello (1867-1936) – demanda das atrizes Rosana Stavis e Helena de Jorge Portela um jogo de cena que tem no peso da representação seu principal pilar. Para refletir sobre realidade, ficção, mentira, mascaramentos e manipulação, no contexto de um conflito no qual duas personagens disputam entre si quem está com a verdade, a escolha da Cia. Stavis-Damaceno foi justamente a de recorrer ao paradigma de uma atuação que acentua a ideia de drama. Choros, expressões superlativas, falas em um tom mais alto que o habitual, atuações que visam aos efeitos de piedade surgem enquadradas pelo pano de fundo reflexivo sobre a representação no teatro. Afinal, qual é o lugar do “dramático” em uma obra que tangencia questões como trauma e violência de gênero?
Foto: Renato Mangolin
A despeito de todo o modismo e desgaste que os entrelaçamentos entre realidade e ficção encontraram na última década – um grande sintoma, sem dúvida, do nosso tempo –, o jogo proposto em Nebulosa de Baco traz uma importante singularidade. Aqui, tal questionamento filosófico está posto para refletir sobre um recorte específico – o abuso sexual – que, de fato, surge constantemente atravessado, inclusive nos próprios tribunais, pela pergunta sobre quem, afinal, estaria dizendo a verdade e quem estaria “mentindo” – sendo aqui a mentira entendida, em certa medida, como sinônimo de “representação”.
Para pensar sobre o espetáculo, escrito e dirigido por Marcos Damaceno, seria possível dialogar com pelo menos três outras referências que igualmente logram acentuar a complexidade dessa questão. Uma delas é o episódio CPF na Nota?, do podcast Rádio Novelo, lançado em janeiro deste ano. Nele, a escritora Vanessa Bárbara tece um relato sobre a perversidade do comportamento manipulador e abusivo de seu ex-marido, a partir de um caso de infidelidade por parte dele. Aqui, o gesto de inverter narrativas a fim de culpabilizar a vítima – tão presente em contextos de violência física e psicológica de gênero – é um ponto de contato com a dramaturgia de Nebulosa de Baco.
Em perspectiva oposta, estaria o filme dinamarquês A Caça (2012), no qual o professor de uma creche é acusado injustamente de abuso por parte de uma criança de 5 anos, o que desencadeia uma reação violenta na comunidade onde vive. Seria possível, ainda, recordar o espetáculo Conversas com o meu pai (2014), no qual a atriz Janaina Leite reflete, entre outras coisas, sobre a dificuldade de lidar com a memória – pelo seu limiar tênue com o lugar da invenção – no contexto da suspeita de um abuso sexual.
Nos três casos, aparecem pontos de vista distintos para abordar situações traumáticas que envolvem possibilidades de abuso. Já no espetáculo da Cia. Stavis-Damaceno, a opção parece ser tanto a de deixar em aberto a questão da verdade quanto a de aproximar o jogo teatral das engrenagens da manipulação, tão presentes em casos de violência de gênero.
Para isso, uma das escolhas mais interessantes da encenação de Marcos Damaceno é a de destinar à atriz Rosana Stavis – que coleciona em sua carreira prêmios como o Shell e o APCA – a interpretação da personagem supostamente manipuladora da “peça dentro da peça”: o padrasto acusado pela enteada de ter abusado dela durante a infância.
Em sua atuação, Stavis busca acentuar justamente o que poderíamos chamar de “efeito de verdade” da personagem masculina, nomeada como “Pai”. Para se defender da acusação de abuso e, mais do que isso, inverter a narrativa, o padrasto interpretado pela atriz apela à emotividade do choro, às pausas dramáticas, à postura curvada de quem se vê como vítima, mas, ao mesmo tempo, também reconhece outros erros que já cometeu.
Foto: Renato Mangolin
Ao emoldurar essa atuação no contexto do ensaio de uma peça de teatro, no qual Rosana também performa uma atriz veterana – tal como ela própria é reconhecida fora dos palcos –, o espetáculo adensa as questões tratadas em sua dramaturgia. Afinal, a escolha de uma ótima atriz para interpretar um padrasto acusado de abuso ajudaria tanto a reforçar sua humanidade – e, portanto, o seu ponto de vista – quanto a sublinhar o oposto, a sofisticada e perversa engenharia presente nesse tipo de manipulação.
Embora o espetáculo, ao meu ver, penda sutilmente a balança da “verdade” para a personagem que denuncia o abuso (o que, de fato, é coerente com o que ocorre nesse tipo de situação na maior parte dos casos), a dramaturgia mantém os sentidos abertos no que se refere a quem, na peça, estaria com a razão.
Nesse sentido, a presença de um espelho na cenografia, disposto no fundo do palco – cuja imagem reflete e ao mesmo tempo distorce aquilo que está diante de si, ou seja, as atrizes e, mais adiante, o próprio público –, surge como uma significativa metáfora para o jogo ético sugerido pela dramaturgia. Sem tecer vereditos, o espetáculo acaba por funcionar como um espelho distorcido da própria plateia.
Nessa perspectiva, o modo que cada espectador encontra para interpretar e julgar as personagens em cena funcionaria como uma espécie de projeção crítica de seus próprios julgamentos também fora dela. Como se nosso modo de olhar a peça dissesse mais sobre nós mesmos do que sobre a obra em si. Não por acaso, a personagem que denuncia o abuso sexual constantemente recorre à metáfora do espelho ao dirigir-se ao seu suposto abusador: “(…) tire essa sua máscara, essa sua máscara social patética. (…) se olhe no espelho. (…) Veja quem você realmente é”.
A despeito dessa densa teia crítica e conceitual que o espetáculo estabelece para o diálogo entre representação e verdade, ocorre também, na escolha do acento dramático para a peça dentro da peça, certo esvaziamento das questões tratadas. Ao colocar a personagem supostamente vítima da situação como prostituta, a dramaturgia pende, de certa forma, para as tintas carregadas da dramaticidade, o que favorece uma abordagem por vezes maniqueísta. Ao mesmo tempo, há certa circularidade no tratamento do díptico verdade-representação que colabora para tornar a fruição de Nebulosa de Baco em alguns momentos arrastada. As passagens de reviravolta trazem algo dessa estética de “drama burguês” que parece voltar a si própria: é a noção em si de “verossimilhança” – para recorrer a um conceito típico dessa estética – que passa a ficar comprometida em algumas passagens, como no episódio de reencontro entre padrasto e enteada, relatado na peça.
No entanto, é também – mais uma vez – o próprio jogo com a representação que igualmente colabora para “desviar” a dramaturgia dos grandes clichês do gênero. Em um dos momentos mais emblemáticos da obra, a atriz Rosana Stavis revela o uso dos famosos cristais japoneses –um produto à base de cânfora que provoca ardor nos olhos, estimulando a produção de lágrimas –, o que não apenas nos leva a repensar nossa própria percepção das cenas vistas anteriormente mas também funciona como sintoma de uma sociedade que busca a todo custo produzir efeitos de “realidade” e de “autenticidade” que acabam por, de fato, legitimar as narrativas e pontos de vista pelo viés da emoção, do drama.
Foto: James Click Photo
Nesse sentido, o espetáculo enfrenta o paradoxo de criticar simultaneamente tanto a sede de “cenas da vida real”, paradigmática das sociedades contemporâneas, quanto, por outro lado, o jogo manipulatório que atravessa as ficções dramáticas catárticas – inclusive ao aproximar essas duas estéticas, a princípio opostas. É justamente quando logra puxar o tapete do drama sem desconsiderar a dramaticidade inerente a uma vivência traumática que Nebulosa de Baco encontra seus melhores momentos.
Ficha técnica:
De: MARCOS DAMACENO
Elenco: ROSANA STAVIS e HELENA DE JORGE PORTELA
Iluminação: BETO BRUEL e ANA LUZIA MOLINARI DE SIMONI
Figurinos: KAREN BRUSTTOLIN
Visagismo: CLAUDINEI HIDALGO
Direção Musical: GILSON FUKUSHIMA
Cenário: MARCOS DAMACENO
Direção Geral: MARCOS DAMACENO
Produção Executiva: BÁRBARA MONTES CARLOS
Assistente Administrativo/Financeiro: EDILAINE MACIEL
Produção de Cenário: CARLA BERRI
Cenotécnica: MIRABOLANTE.CENO
Cenotécnico: MARCO SOUZA
Assistente de Cenotécnico: JOEL DA SILVA
Operador de Luz: RODRIGO LOPES E VITOR CASTANHEIRA
Equipe de Costura: VALÉRIA LOPES
Contramestre/Modelista: FATIMA FÉLIX
Foto da Identidade Visual: MARINGAS MACIEL Com intervenção de BRUNO MARCHETTO
Design gráfico: LORENZO BRUEL
Mídias Sociais: JULIANA VILLAS BOAS
Produção Local (BH): YASMINE RODRIGUES
Assessoria de Imprensa (BH): JOZANE FALEIRO – LUZ COMUNICAÇÃO
Criação e produção: CIA.STAVIS-DAMACENO
[1] Agradeço as interlocuções e colaborações de Saulo Moreira e de Juan Cordeiro, que também realizou a revisão desta crítica.