Crítica a partir do espetáculo Âmago [ÂmaRgo], da Mimulus Cia de Dança (MG)
– por Joelma Xavier* –
De quantos enquadramentos nos cercamos cotidianamente? Lentes, óculos, palcos, telas de TV, de celular, de computador, de cinema, de quadros… molduras, janelas, portas, câmeras, carros, cômodos, casas, azulejos, embalagens, porta-copos, bandejas, portais, portões, carta, cartões, carteira de identidade, certidão de nascimento, passaporte, cartão de vacina, folhas A4, A3… caderno, capa, página, disco, CD, livro, fotografias… Sim, muitas são as formas com as quais emolduramos nossos modos de ver e de pensar o mundo. Mas será que enquadramos para melhor vermos [o de dentro e o de fora] ou apenas para nos restringirmos a uma perspectiva?
Quando falam sobre a experiência do ato de enquadrar, o cineasta alemão Win Wenders lança a hipótese de que o “enquadramento se define muito mais pelo que não se mostra do que pelo que se mostra” e o escritor português José Saramago afirma ser necessário dar uma volta completa em torno das coisas para que possamos bem conhecê-las. Ambos os relatos fazem parte do documentário Janela da Alma, de João Jardim e Walter Carvalho (2001), no qual diferentes personalidades, do mundo artístico ao político, falam sobre como percebem – ainda que de forma míope ou quase cega – o mundo e seus entornos. Por que todo esse circuito de quadros e de vozes? Porque o enquadramento é um dos motes do espetáculo Âmago [ÂmaRgo], da Mimulus Cia de Dança, livremente inspirado em alguns depoimentos desse documentário.
O espetáculo inicia-se com deslizamentos cênicos de uma pequena luz sobre um fundo negro que traz à cena os movimentos de uma bailarina, a partir da elasticidade de suas vestes e a partir dos gestos de enquadrar-se em seus braços, pernas, meias e, especialmente, nos registros de uma câmera de celular, de onde partiu a pequena luz. No palco, a bailarina e, também, uma câmera; na mesma cena, o gesto dançado e o seu duplo enquadrado em uma tela. Desse ponto de partida, o espetáculo Âmago já nos convida a pensar na maleabilidade das imagens e nos modos como projetamos nossos movimentos no mundo. A tela projeta a realidade do movimento ou apenas um recorte de quem elabora o seu registro? De que falamos, quando pensamos em imagens projetadas? Que realidade importa quando a sociedade se projeta nas faces de múltiplos dispositivos?
O espetáculo abre fissuras nos modos de ver por meio de enquadramentos: sejam os enquadramentos das telas e do palco, sejam os enquadramentos das formas de se entender a dança contemporânea, já que a montagem da Cia Mimulus nos desafia a perceber compassos tradicionais e reinventados da dança de salão, em simultaneidade à construção de movimentos coreográficos que não se circunscrevem a essa modalidade de dança. A coreografia, portanto, apresenta uma linguagem que se elabora nos movimentos de duos e nos bastidores da cena, e se expande às noções de condução mútua entre homens e mulheres e aos gestos construídos em uma atmosfera de sentimentos (transitando entre o riso, a ironia, a solidão, o desejo, o amor e a dor), esboçados nos processos da dança contemporânea.
Foto de Guto Muniz
Ainda sobre essa atmosfera dos sentimentos, podemos ver perspectivas do gesto dançado, tensionadas a partir de vozes distintas, na interpretação variada de uma mesma canção, como ocorre nos deslizamentos sonoros da voz de Marisa Monte e de Caetano Veloso, nos “Sonhos”, de Peninha, ou ainda da intensidade elaborada nas vozes de Alice Caymmi, de Ney Matogrosso e de Maysa Matarazzo, em tão distintas interpretações para a canção “Meu mundo caiu”, de Maysa Matarazzo. Sob o som de cada versão, uma possibilidade de enquadramento e de dramaticidade para a trilha do espetáculo e, sob cada voz, os devaneios do sensível, vivenciados nos gestos dançados da coreografia. No conjunto dessas conexões, a Mimulus elabora o campo multifacetado da montagem, em seu sentido essencial: sobrepor/justapor/confrontar cenas, objetos, perspectivas, tal como ocorre com a linguagem cinematográfica e em outros campos de conhecimento.
Foto de Guto Muniz
A forma como se realiza o jogo cênico da dança, nesse espetáculo, não se limita ao ato de movimentar-se [por movimentar-se], mas para compor um olhar sobre a vida contemporânea e sobre a forma como o ser humano se esconde em seus espelhos projetados. A ideia de enquadramento dos corpos, experimentada na coreografia com a trilha de “Insensatez”, de V. de Moraes e T. Jobim, com interpretação de Fernanda Takai, por exemplo, vem ao palco a partir da criação de movimentos de quatro bailarinos que se deslocam, o tempo todo, de mãos dadas. Os gestos, à medida que se desenvolvem, projetam uma ideia de unidade, de beleza sobre um conjunto e, simultaneamente, de prisão, de limitação às amarras, contidas nos entrelaçamentos das mãos e dos corpos de bailarinos e bailarinas, sugerindo o traço paradoxal de que a mão que se entrelaça à nossa e que nos acolhe também pode ser aquela que nos ameaça, que nos machuca e que nos prende.
Além desse jogo intencionado nas perspectivas do entrelaçar e do prender, característicos das relações humanas, o espetáculo Âmago experimenta o humor a partir de molduras que enquadram outras molduras, dos quadros que projetam outros quadros, de telas que simulam outras telas, alegorizando formas de afeto e de contatos virtuais. De maneira irônica, os bailarinos realizam movimentos dentro de molduras e simulam um jogo de corpos que saem dessas telas à procura da carícia, do afeto e das texturas da pele, no para-além do mundo virtual. Nesses olhares, a Mimulus Cia de dança mostra a cegueira nos modos de ver-sentir o mundo na contemporaneidade: o dispositivo enquadrado do touch-screen revela uma cegueira dos indivíduos em relação aos arrepios e às sensações da pele, quando diretamente tocada, sentida, dedilhada, porque o tato traz, na pele, o gestual do desejo que jamais se circunscreve aos experimentos do cristal líquido ou de qualquer tela.
Foto de Guto Muniz
Na ideia do jogo de corpos, olhares, vozes e de gestos ainda se projeta o jogo com a palavra encenada. Da palavra com que se intitula o espetáculo, Âmago [ÂmaRgo], surgem outras, num anagrama cenográfico:
AmaRgo
Âmago
Amor
Amar
Mar
Ar
O título, projetado no cenário, divide-se em novas possibilidades de palavras e de sentidos, abertos a novas imagens, a novas perspectivas que deslizam nos campos do desejo humano e nas impossibilidades dos enquadramentos sociais. O movimento dançado transita no amargor da solidão, na força rítmica do mar, nos delírios do amor e na atmosfera rarefeita do ar e do sonho e, assim, o espetáculo gira os olhares para o âmago de cada ser, para o lugar de dentro da alma.
Foto de Guto Muniz
O cineasta Wim Wenders, ainda em depoimento presente no documentário Janela da Alma, afirma que “a atual superabundância de imagens significa, basicamente, que nós somos incapazes de prestar atenção”. Com essa fala, o cineasta projeta um olhar sobre o arrefecimento das sensações no campo das relações no mundo contemporâneo, além de condenar os excessos imagéticos, nos mais variados dispositivos. Diante desses dispositivos e dos enquadramentos contemporâneos, a Mimulus Cia de Dança propõe, com o espetáculo Âmago, um olhar crítico sobre a limitação das telas e abre fissuras sobre as diferentes formas de cegueira da contemporaneidade. Âmago, portanto, explora a resistência do humano, em cenários demasiadamente artificiais do mundo enquadrado das imagens e das relações contemporâneas.
** Este ensaio foi produzido a partir do espetáculo Âmago, da Cia Mimulus de Dança (visto no Grande Teatro do Palácio das Artes, em 09/02/2019 – Belo Horizonte); Crédito das fotos: Guto Muniz (disponíveis aqui e aqui).
Ficha técnica:
Direção: Jomar Mesquita
Coreografia: bailarinos da Mimulus Cia de Dança
Bailarinos: Mimulus Cia de Dança
Cenografia: Ed Andrade e Cristiano Cezarino
Confecção de Cenário: Joaquim Pereira
Iluminação: Junior da Mata e Jomar Mesquita
Figurino: Baby Mesquita, Juliana Macedo e Ednara Botrel
Técnico de iluminação: Junior da Mata
Fotografia: Guto Muniz
Seleção e edição musical: Jomar Mesquita
Consultor internacional: Guy Darmet
Produção: Amora Produções Artísticas e Fábio Ramos
Direção geral: Baby Mesquita
Apoio eterno: João Baptista Mesquita
Informações sobre o espetáculo Âmago e sobre a Mimulus Cia de Dança disponíveis aqui.
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.
JANELA da Alma (Brasil, 2011, documentário). Direção de João Jardim e Walter Carvalho. Com: José Saramago, Hermeto Paschoal, Oliver Sacks, Wim Wenders e outros.
* Joelma Xavier é professora do Departamento de Linguagem e Tecnologia do CEFET/MG, Belo Horizonte. Atua nos campos de Pesquisa de Teoria da Literatura e de Literatura Comparada, especialmente em Literatura, outras Artes e Mídias. Currículo Lattes.